28 de novembro de 2010

À meia-noite levarei sua alma


NECRONOMICON


Segundo os ocultistas, o Necronomicon ou o Livro dos Nomes Mortos, é uma compilação de "nomes proibidos” feita pelo árabe Abdul Alhazred em Damasco, em 750. O livro é uma longa lista de entidades cósmicas (demônios, se você preferir) extremamente poderosas que habitaram a Terra antes do homem. A simples pronúncia dos seus nomes é suficiente para invocá-las. Tente você mesmo: Cthulhu, Nyarlathotop, Azathoth.

O livro teria sido traduzido para o latim e, mais tarde, queimado pela Inquisição, mas, apesar de tudo, sobrevivido. Parece história de filme B, né? Mas é mais complicado. O Necronomicon é, na verdade, uma criação literária do escritor americano H. P. Lovecraft (1890-1937), que queria deixar suas histórias góticas ainda mais bizarras. Nunca existiu, nunca foi traduzido, nada. Os ocultistas, no entanto, dizem que o Necronomicon existe sim e que Lovecraft conhecia o livro, mas não o inventou. Uma versão em inglês, traduzida por John Dee (1527-1608), místico e matemático que viveu na corte de Elizabeth I, teria sobrevivido longe da Inquisição. O aventureiro-boêmio-místico-picareta ALEISTER CROWLEY (1875-1947) também afirmava possuir um exemplar em cima do criado-mudo.

Mas, afinal, Lovecraft criou ou não criou a porcaria do livro? Sim e não, se aceitarmos a teoria de Jorge Luis Borges. Segundo Borges, ao criar o Necronomicon, Lovecraft o tornou real. E, portanto, todas as criaturas que estão dentro dele. Se você pronunciou alguns daqueles nomes, o problema é seu.


Fonte: Conspirações, de Edson Aran.

26 de setembro de 2010

O demônio do meio-dia



Sobre a depressão, Solomon começa afirmando que: “Quando ela chega, degrada o eu da pessoa e finalmente eclipsa sua capacidade de dar ou receber afeição. É a solidão dentro de nós que se torna manifesta e destrói não apenas a conexão com outros, mas também a capacidade de estar apaziguadamente apenas consigo mesmo. Embora não seja nenhum profilático contra a depressão, o amor é o que acolchoa a mente e a protege de si mesma. Medicamentos e psicoterapia podem renovar essa proteção, tornando mais fácil amar e ser amado – e é por isso que funcionam”.

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12 de setembro de 2010

Som & fúria


 O bem de um livro reside em ser lido. Um livro é feito de signos que falam de outros signos, os quais por sua vez falam das coisas. Sem um olho que o leia, um livro é portador de signos que não produzem conceitos, e portanto é mudo. Esta biblioteca nasceu talvez para salvar os livros que contém, mas agora vive para os sepultar. Por isso tornou-se fonte de impiedade. O despenseiro disse que traíra. Assim fez Berengário. Traiu. Oh, que dia horrível, meu bom Adso! Cheio de sangue e de ruína. Por hoje já chega. Vamos nós também a completas, e depois vamos dormir.
 

Umberto Eco – O Nome da Rosa

20 de agosto de 2010

A Mão do Macaco

W.W. JACOBS


I


Lá fora, a noite era fria e úmida, mas na pequena sala de estar de Laburnam Villa, as gelosias estavam cerradas e o fogo brilhava alegremente. Pai e filho estavam jogando xadrez, e o primeiro, que possuía ideias sobre jogo, envolvendo uma mudança radical de tática, punha o rei em tão desesperados e desnecessários perigos que provocou comentários até da velha senhora de cabelos brancos, que estava fazendo, placidamente, crochê perto do fogo.


– Escuta esse vento! – disse o senhor White, que, tendo notado um erro fatal quando já era tarde demais, desejava evitar, com habilidade, que o filho o notasse também.
– Estou escutando – disse o outro, observando atentamente o tabuleiro, ao mesmo tempo que estendia a mão. – Xeque!
– Estava achando muito difícil que ele viesse esta noite – disse o pai, com a mão erguida sobre o tabuleiro.
– Mate! – prosseguiu o filho.
– Isso é o que tem de pior, viver assim tão afastado! – vociferou o senhor White, com súbita e inesperada violência -; de todos os lugares idiotas, lamacentos e fora de mão para se morar, este é o pior. O caminho é um atoleiro e a estrada, um rio. Não sei o que essa gente pensa. Acho que, porque somente duas casas da estrada estão alugadas, entendem que não tem importância.
– Não te importes, querido – disse-lhe a esposa, conciliatoriamente –; talvez ganhes a próxima partida.


O senhor White ergueu bruscamente a vista, mesmo em tempo de interceptar um olhar de compreensão, trocado entre mãe e filho. As palavras morreram-lhe nos lábios, e escondeu um sorriso contrafeito, na barba rala e grisalha.
– Aí está ele! – exclamou Herbert White, ao ouvir o portão bater com estrondo e pesados passos, que vinham em direção à porta.

O velho levantou-se com solicitude hospitaleira, e, enquanto abria a porta, puderam ouvi-lo lastimando-se do tempo, com o recém-chegado. Este também se lastimou, de maneira que a senhora White disse: "Chut! Chut!" e tossiu de leve, quando o marido entrou no aposento, seguido por um homem alto e corpulento, de olhos salientes e faces rubicundas.
– Sargento-major Morris – disse, apresentando-o.


O major trocou apertos de mão, e, tomando a cadeira oferecida junto ao fogo, observou, com satisfação, que o anfitrião trazia uísque e copos e punha uma pequena chaleira de cobre no fogo.
Ao terceiro copo, seus olhos ficaram mais brilhantes e começou a falar, enquanto o pequeno círculo da família olhava, com agudo interesse, aquele visitante de terras longínquas, que encostava os ombros robustos no espaldar da cadeira, falando de cenas estranhas e feitos denodados, de guerras e pestes e de povos exóticos.


– Vinte e um anos disto – disse o senhor White, acenando, com a cabeça, para a esposa e o filho. – Quando partiu, era um belo moço, no armazém. Agora, olhem para ele.
– Não parece ter-se dado muito mal – observou a senhora White delicadamente.
– Eu gostaria de ir à Índia, também – disse o velho cavalheiro –, só para ver como aquilo é, sabem?
– Foi melhor ficar por aqui mesmo – retrucou o major, abanando a cabeça. Pousou o copo vazio e, suspirando de leve, sacudiu-a outra vez.
– Gostaria de ver aqueles velhos templos, e faquires, e pelotiqueiros – insistiu o velho. – O que era que ia começar a contar-me no outro dia, a respeito de uma mão de macaco, ou coisa que o valha, Morris?
– Nada – respondeu o soldado, muito depressa. – Pelo menos, nada que valha a pena ouvir-se.
– Mão de macaco? – indagou a senhora White, com curiosidade.
– Bem, apenas o que se poderia chamar magia, talvez – respondeu o major, de maneira vaga.


Seus três ouvintes curvaram-se para a frente, interessados. O visitante, alheadamente, levou o copo vazio aos lábios e depois tornou a pousá-lo. O anfitrião encheu-lho de novo.
– À simples vista – disse o major, remexendo no bolso – é apenas uma pequena mão comum, seca e mumificada.


Tirou qualquer coisa do bolso e exibiu-a. A senhora White recuou, com uma careta, mas o filho, pegando no objeto, examinou-o com curiosidade.
– E que é que há de especial nela? – perguntou o senhor White, tomando-a das mãos do filho e pousando-a sobre a mesa, depois de examiná-la.
– Possui um encantamento, que lhe foi posto por um velho faquir – explicou o major –, um homem muito velho. Queria mostrar que o destino segue a vida dos homens e que aqueles que interferem com ele o fazem para seu próprio mal. Pôs-lhe um encantamento, para que três homens distintos pudessem satisfazer, cada um, três desejos.


Suas maneiras eram tão impressionantes que os ouvintes tinham a consciência de que seus risos alegres soavam um pouco falsos.
– Bem, e por que não formula três desejos, senhor? – perguntou Herbert White, inteligentemente.
O soldado olhou-o, da maneira que um homem de meia-idade olha para a mocidade presunçosa.
– Já formulei. . . – disse, devagar, e o seu rosto corado empalideceu.
– E obteve, realmente, que esses três desejos se realizassem? – perguntou o senhor White.
– Obtive – respondeu o major, e o copo tilintou de encontro aos seus dentes brancos.
– E alguém mais já desejou?
– O primeiro homem também satisfez seus três desejos, sim. . . – foi a resposta. – Não sei quais foram os dois primeiros, mas o terceiro foi a morte. Foi assim que obtive a mão.


Seu tom era tão grave que um silêncio caiu sobre o grupo.
– Se já obteve os seus três desejos, não lhe serve para mais nada; então, Morris – disse o velho, por fim -, para que a conserva?

O soldado abanou a cabeça.
– Capricho, suponho – disse, devagar. – Tive uma vaga ideia de vendê-la, mas não creio que o faça. Já causou infortúnios demais. Além disso, ninguém a compraria. Alguns acham que é uma história fantástica, e os que acreditam alguma coisa dela, querem experimentar primeiro e pagar-me depois.
– Se pudesse formular outros três desejos – perguntou o velho, fitando-o atentamente –, fa-lo-ia? 

– Não sei – respondeu o outro -, não sei.

Pegou na mão, e, balançando-a entre o indicador e o polegar, jogou-a de súbito no fogo. White, com um pequeno grito, curvou-se e tirou-a.
– É melhor que a deixe queimar-se – sentenciou o soldado, solenemente.
– Se não a quer, Morris – pediu o velho –, dê-ma.
– Não farei isso – respondeu o amigo, com rabugice. – Atirei-a ao fogo. Se a quiser guardar, não me censure pelo que possa acontecer. Jogue-a no fogo de novo, como um homem de juízo.


O outro abanou a cabeça e examinou atentamente sua nova aquisição.
– Como se faz? – perguntou.
– Segura-se levantada, com a mão direita, e faz-se o pedido em voz alta – disse o major – mas previno-o... contra as consequências.
– Parece coisa das Mil e uma noites! – exclamou a senhora White, enquanto se levantava e começava a preparar tudo para a ceia. – Não achas que poderias desejar quatro mãos para mim?


O marido tirou o talismã do bolso e, então, os três desataram a rir, enquanto o major, com um ar de susto no rosto, o segurava pelo braço.
– Se quer formular um pedido – disse-lhe, severamente –, faça-o de maneira inteligente.


O senhor White deixou cair de novo o talismã no bolso, e, chegando as cadeiras, conduziu o amigo à mesa. Com o entretenimento da ceia, o objeto foi em parte esquecido, e, depois, os três ficaram sentados, escutando, atentos, uma segunda série das aventuras do soldado na Índia.

– Se a história a respeito da mão do macaco não for mais verdadeira do que as outras que ele nos esteve contando – disse Herbert, quando a porta se fechou às costas do hóspede, apenas em tempo para este apanhar o último trem –, não conseguiremos grande coisa com ela.
– Deste-lhe alguma coisa por ela, meu velho? – perguntou a senhora White, olhando para o marido, com atenção.
– Uma bagatela – respondeu ele, corando de leve. – Não queria aceitar, mas obriguei-o. E insistiu de novo comigo para que a jogasse fora.
– Não faça isso! – exclamou Herbert, com pretenso horror. – Ora essa! Vamos ficar ricos, famosos e felizes. Deseje ser imperador, papai, para começar; depois, não poderá ser dominado pela esposa.


Correu em volta da mesa, perseguido pela indignada senhora White, armada de uma vassoura. O senhor White tirou a mão de macaco do bolso e olhou para ela, indeciso.
– Não sei o que hei de desejar, esta é a verdade... – disse, lentamente. – Parece-me que tenho tudo o que quero.
– Se liquidasse a hipoteca da casa, seria completamente feliz, não é verdade? – sugeriu Herbert, pousando-lhe a mão no ombro. – Pois bem, deseje duzentas libras, então; é justamente o que falta.


O pai, sorrindo, meio envergonhado da própria credulidade, ergueu o talismã, enquanto o filho, com ar solene, que um piscar de olhos à mãe desmentia, sentava-se ao piano e fazia soar alguns acordes majestosos.
– Desejo ter duzentas libras – pediu o velho, em voz alta.


Uma bela ressonância do piano saudou aquelas palavras, interrompida por um grito assustado do velho. O filho e a esposa correram para ele.
– Mexeu-se!... – exclamou ele, com um olhar de receio para o objeto que jazia no chão. – Quando formulei o desejo, contraiu-se-me na mão qual uma cobra.
– Bem, não vejo o dinheiro... e aposto que nunca o verei – atalhou o moço.
– Deve ter sido impressão tua, meu velho – disse a esposa, olhando para ele com ansiedade.

O marido abanou a cabeça.
– Não importa, porém. Não aconteceu nada de mau, mas levei um choque assim mesmo.


Sentaram-se novamente, junto ao fogo, enquanto os dois homens acabavam de fumar seus cachimbos. Lá fora, o vento estava mais forte do que nunca, e o velho teve um sobressalto nervoso ao som de uma porta batendo no primeiro andar. Um silêncio insólito e deprimente pesou sobre os três, e prolongou-se até que o casal de velhos se levantou para recolher-se.
– Espero que encontre o dinheiro amarrado em um grande maço, no meio da cama  gracejou Herbert, ao curvar-se para dizer-lhes boa noite – e qualquer coisa terrível agachada em cima do guarda-roupa, espiando-o, enquanto o senhor se apossa da fortuna mal ganha.

O senhor White permaneceu sozinho no escuro, observou as brasas e viu faces formarem-se nelas. A última era tão horrível e simiesca que a encarou espantado. Parecia tão vívida que provocou nele um sorriso constrangido; pegou de sobre a mesa uma vasilha com água e despejou-a no braseiro. Sem querer, tocou a mão do macaco e sentiu um leve calafrio; esfregou as mãos nas vestes e foi para a cama.


II

Na manhã seguinte, na claridade do sol de inverno iluminando a mesa do café, Herbert riu-se do susto dos pais. Havia um ar de saudável banalidade no aposento que faltava na noite anterior, e a pequena mão de macaco, suja e enrugada, estava pousada sobre o aparador, com um pouco caso que não demonstrava grande fé nas suas virtudes.

– Suponho que todos os velhos soldados são iguais – disse a senhora White. – Que ideia, a nossa, de dar ouvidos a tais contrassensos! Como poderiam realizar-se simples desejos, hoje em dia? E, se pudessem, como haviam de fazer-te mal duzentas libras, meu velho?
– Podiam cair-lhe do céu na cabeça – chasqueou o frívolo Herbert.
– Morris contou que as coisas aconteciam tão naturalmente – disse o pai – que se poderia, querendo, atribuí-las a mera coincidência.
– Bem, não vá gastar o dinheiro todo antes que eu esteja de volta – recomendou Herbert, levantando-se da mesa. – Receio que se transforme em um mesquinho avarento e que tenhamos de desconhecê-lo.


A mãe riu-se, e, acompanhando-o até a porta, observou-o enquanto seguia pela estrada abaixo, e depois, voltando à mesa do café, divertiu-se muito às custas da credulidade do marido. O que não a impediu de precipitar-se para a porta, quando o carteiro bateu, e nem tampouco de resmungar qualquer coisa sobre majores reformados, de hábitos biliosos, quando verificou que o correio lhe trazia apenas uma conta do alfaiate.
– Herbert vai dizer mais algumas pilhérias, espero, quando voltar – disse ela, quando se sentavam para jantar.
– Imagino que sim – concordou o senhor White servindo-se de cerveja –, mas, seja como for, aquela coisa mexeu-se na minha mão; isso eu posso jurar.
– Pensaste que se moveu – observou a velha senhora, meigamente.
– Digo que se mexeu! – replicou o outro. – Não resta a menor dúvida. Eu tinha... o que foi?


A esposa não respondeu. Estava observando os misteriosos movimentos de um homem, lá fora, que, espreitando de maneira indecisa para a casa, parecia estar tentando resolver-se a entrar. Em conexão mental com as duzentas libras, notou que o estranho estava bem vestido e usava uma cartola de seda, brilhante e nova. Três vezes parou ao portão, mas, depois, se afastou de novo. Da quarta vez, parou com a mão pousada nele, e, com súbita resolução, abriu-o e caminhou em direção à casa. A senhora White, no mesmo instante, levou as mãos às costas e, desatando apressadamente os cordões do avental, colocou aquela útil peça de roupa sob a almofada da sua cadeira.

Trouxe o estranho, que parecia pouco à vontade, para dentro do aposento. Ele olhava furtivamente para a senhora White, e escutava, com ar preocupado, enquanto a velha senhora pedia desculpas pela aparência da sala, e pelo sobretudo do marido, um agasalho que, geralmente, ele reservava para o jardim. Ela esperou, tão pacientemente quanto o seu sexo o permitia, que o homem desembuchasse o que tinha para dizer, mas, a princípio, ele conservou-se num silêncio embaraçado.
– Pediram-me... para vir aqui – disse, por fim, e curvou-se para tirar um fiapo de algodão das calças. – Venho de parte de Maw & Meggins.

A velha senhora sobressaltou-se.
– Que foi? – perguntou, com a respiração alterada. – Aconteceu alguma coisa a Herbert? Que é? Que é?

O marido interpôs-se.
– Vamos, vamos, minha velha – disse, apressadamente. – Senta-te, e não tires conclusões antecipadas. Não é portador de más notícias, estou certo, senhor – e observava o outro atentamente.
– Sinto muito. . . – começou o visitante.
– Está ferido? – perguntou a mãe.

O visitante curvou-se, confirmando.
– Gravemente ferido, mas já não sofre coisa alguma.
– Oh, graças a Deus! – exclamou a velha senhora, juntando as mãos. – Graças a Deus, por isso. Graças...


Interrompeu-se de súbito, ao perceber o sinistro significado da afirmativa do outro e viu a terrível confirmação dos seus receios na cara compungida que ele fez. Suspendeu a respiração, e voltando-se para o marido, menos vivo em compreender do que ela, pousou a mão trêmula na dele. Houve um longo silêncio.
– Foi colhido por uma máquina – disse o visitante por fim, em voz baixa.
– Colhido por uma máquina – repetiu o senhor White, de maneira vaga. – Sim.


Ficou sentado, olhando confusamente pela janela; e, tomando a mão da esposa entre as suas, apertou-a como costumava fazer nos velhos tempos em que se namoravam, quase quarenta anos atrás.
– Era o único que nos restava – disse, voltando-se gentilmente para o visitante. – É duro.

O outro tossiu, e, levantando-se, caminhou lentamente até à janela.
– A firma encarregou-me de transmitir-lhes a sua sincera simpatia pela grande perda que sofreram – disse, sem voltar a olhar. – Peço-lhes para compreenderem que sou apenas um empregado e que estou obedecendo a ordens recebidas.


Não houve resposta; a face da anciã estava branca, os olhos vítreos, a respiração mal audível; no rosto do marido, havia uma expressão que devia ser semelhante à do seu amigo major ao entrar pela primeira vez em ação.
– Devo dizer-lhes que Maw & Meggins negam qualquer responsabilidade – continuou o outro. 
 Não admitem qualquer obrigação, mas, em consideração aos serviços prestados por seu filho, desejam oferecer-lhes certa importância em dinheiro, a título de compensação.
O senhor White deixou cair a mão da esposa, e, pondo-se em pé, fitou o visitante com um olhar horrorizado. Seus lábios secos balbuciaram a palavra:
– Quanto?
– Duzentas libras – foi a resposta.


Inconsciente do grito da esposa, o ancião sorriu debilmente, estendeu as mãos feito um homem cego, e caiu, qual um farrapo, inerte, no assoalho.


III

No vasto cemitério novo, a umas duas milhas de distância, os anciãos enterraram o morto querido e voltaram para a casa, agora imersa em sombras e silêncio. Acontecera tudo tão rapidamente que, a princípio, mal podiam compreendê-lo, e tinham ficado em um estado de expectativa, como se alguma coisa mais devesse acontecer  alguma coisa que aliviasse aquela carga demasiado pesada para os seus velhos corações suportarem. Mas os dias se passaram e a cruel expectativa cedeu lugar à resignação  a resignação irremediável dos velhos, às vezes erroneamente chamada apatia. Às vezes, mal trocavam uma palavra, porque agora não tinham sobre que falar, e seus dias eram longos e enfadonhos.

Foi cerca de uma semana depois daquilo que o ancião acordando de súbito, uma noite, estendeu a mão e verificou que se achava sozinho na cama. O quarto estava em trevas e vinha da janela um som de soluços abafados. Sentou-se na cama e escutou.
– Volta - disse ele, com ternura. – Vais ficar com frio.
– Mais frio estará sentindo meu filho – respondeu a anciã, e soluçou mais alto.


O som dos soluços morreu nos ouvidos dele. A cama estava quente e, seus olhos, pesados de sono. Dormitou um pouco, agitado, e depois adormeceu, até que um súbito grito selvagem da esposa o acordou em sobressalto.
– A mão do macaco! – gritava ela, selvagemente. – A mão do macaco!
Ele despertou, alarmado.
– Onde? Onde está? Que foi que aconteceu?


Ela veio cambaleando pelo quarto, em direção a ele.
– Quero-a – disse, calmamente. – Tu não a destruíste?
– Está na sala, na prateleira – respondeu ele, muito admirado. – Por quê?

Ela chorava e ria-se ao mesmo tempo e, curvando-se, beijou-o na face.
– Só agora me lembrei disso – disse, histericamente. – Por que não me lembrei antes? Por que não te lembraste tu?
– Lembrar de quê?
– Dos outros dois desejos – respondeu ela, rapidamente. – Só formulamos um.
– E não foi o bastante? – perguntou ele, com violência.
– Não! – exclamou ela, triunfalmente. – Formularemos mais um. Vai lá embaixo, traze-a depressa, e manifesta o desejo que teu filho esteja vivo de novo.


O homem sentou-se na cama e afastou as cobertas de sobre os membros trêmulos.
– Santo Deus, estás louca! – exclamou, aterrado.
– Vai buscá-la – insistiu ela. – Vai buscá-la e pede. Oh, meu filho, meu filho!
O marido riscou um fósforo e acendeu a vela.
– Volta para a cama – disse, irresolutamente. – Não sabes o que estás dizendo.
– Obtivemos a realização do primeiro desejo – disse a anciã, com fervor –; por que não havemos de obter o segundo?
– Uma coincidência... – gaguejou o ancião.
– Vai buscá-la e pede! – gritou a anciã, trêmula.

O velho homem agitou-se, e falou para ela, a voz comovida:
– Ele já está morto há dez dias e, ainda mais, há algo que não quis que soubesses... só consegui reconhecê-lo pelas roupas. Se a cena era, então, demasiadamente horrível de se ver, o que não será agora?
– Traze-o de volta! – gritou novamente a anciã, e arrastou-o em direção à porta. – Achas que terei medo da criança que criei?


Ele desceu, no escuro, tateou o caminho para a sala e depois para o aparador. O talismã estava no seu lugar, e um horrível medo de que o desejo não formulado trouxesse o filho mutilado à sua presença, antes que ele pudesse fugir do aposento, apoderou-se do seu espírito. Susteve a respiração, quando viu que perdera a direção da porta. Com a testa úmida de suor, caminhou às apalpadelas em volta da mesa, e foi-se arrastando, ao longo da parede, no estreito corredor, com aquela coisa nojenta na mão.

Até o rosto da esposa pareceu-lhe mudado, quando entrou no quarto. Estava branco e expectante, e, para seu receio, parecia ter um ar sobrenatural. Teve medo dela.
– Pede! – gritou ela, com voz forte.
– É uma tolice inútil – esquivou-se ele.
– Pede! – repetiu a esposa.

Ele ergueu a mão. 
– Quero meu filho vivo novamente.

O talismã caiu no assoalho e o velho fitou-o, estremecendo. Depois, deixou cair-se, tremendo, em uma cadeira, enquanto a esposa, com os olhos ardendo, se dirigia à janela e levantava a gelosia.

Ficou sentado até sentir-se enregelado de frio, olhando de vez em quando para a figura da anciã, espreitando para fora pela janela. O coto da vela, que ardera até abaixo do anel do castiçal de porcelana, lançava sombras oscilantes sobre o teto e as paredes, até que, com uma palpitação mais forte do que as outras, extinguiu-se. O ancião, com indizível sensação de alívio pelo fracasso do talismã, voltou à cama, e, um minuto ou dois após, a anciã veio, silenciosa e apática, para junto dele.

Nenhum dos dois falou e ambos ficaram deitados silenciosamente, escutando o tique-taque do relógio. Um degrau da escada estalou e um camundongo assustado correu ruidosamente por dentro da parede. A escuridão era opressiva; depois de ficar algum tempo deitado, reunindo coragem, o marido pegou na caixa de fósforos e, riscando um, desceu as escadas para buscar uma vela.

No último degrau, o fósforo apagou-se, e ele parou para acender outro, mas, naquele momento, uma batida tão leve e furtiva que mal era audível, soou na porta da rua.Os fósforos caíram-lhe das mãos. Ficou imóvel, com a respiração suspensa, até que a batida se repetiu. Então, voltou-se e correu velozmente até o quarto, fechando a porta atrás de si. Uma terceira batida ressoou pela casa.
– Que foi isto? – exclamou a anciã, sobressaltando-se.
– Um rato – disse o ancião, em voz trêmula. – Um rato. Passou por mim, nas escadas.


A esposa sentou-se na cama, escutando. Uma batida forte ressoou pela casa.
– É Herbert! – gritou ela. – É Herbert!
Correu para a porta, mas o marido colocou-se diante dela e, agarrando-a pelo braço, segurou-a com força.
– Que vais fazer? – sussurrou, asperamente.
– É meu filho, é Herbert! – gritou ela, lutando mecanicamente. – Tinha-me esquecido de que eram duas milhas de caminho. Por que me seguras? Solta-me! Tenho de abrir a porta.
– Pelo amor de Deus, não o deixes entrar! – disse o ancião, tremendo.
– Tens medo do teu próprio, filho! – exclamou ela, debatendo-se. – Deixa-me ir! Já vou, Herbert, já vou!


Houve outra batida, e mais outra. A anciã, num súbito arranco, libertou-se e saiu correndo do quarto. O marido seguiu-a até ao patamar e chamou-a insistentemente, enquanto ela corria escadas abaixo. Ouviu a corrente de segurança ser retirada e a lingueta da chave abrir-se, rangendo. Depois, a voz da anciã, áspera e palpitante.
– O ferrolho! – gritou, alto. – Desce, não consigo soltá-lo!


Mas o marido estava de gatas, arrastando-se ferozmente pelo chão, à procura da mão do macaco. Se pudesse ao menos encontrá-la, antes que aquela horrível coisa lá de fora entrasse! Uma verdadeira saraivada de batidas repercutiu pela casa, e ele ouviu o arrastar de uma cadeira, que a esposa estava colocando junto da porta. Ouviu, ainda, o ruído do ferrolho ao ser aberto lentamente; no mesmo instante, achou a mão do macaco, e, freneticamente, bradou seu terceiro e último desejo.

As batidas pararam de súbito, embora o seu eco inundasse, ainda, a casa. Ouviu a cadeira sendo arrastada para trás e a porta abrir-se. Um vento frio encanou pelo vão das escadas, mas o longo e sonoroso lamento de decepção e agonia da esposa deu-lhe coragem para descer até onde ela estava, e abrir a porta por trás dela. O lampião, que bruxuleava em frente, mostrou-lhe a estrada, calma e deserta.

5 de agosto de 2010

Mil anos atrás desabou na Terra o planeta de Rinceau


por Alexandre Soares Silva


I. Prólogo (com galinhas)


Mil anos atrás desabou na Terra o planeta de Rinceau, feito de vitrais, se espatifando durante a noite na cidade de Lyon. As pessoas acordaram com o barulho de um planeta inteiro de vidro caindo nos seus telhados e, saindo para a rua, descobriram que pisavam em milhares de cacos de vidro, que só quando o sol nasceu foi possível ver que eram de cores variadas: algumas ruas estando cobertas de cacos vermelhos, outras de amarelos, verdes, azuis, e grisaille. Vacas e cabras, e alguns bêbados, e coitado um mendigo com bócio, que dormiram aquela noite ao relento, amanheceram mortos com pedaços de vidro enfiados nos pescoços, nas costas, no mencionado bócio, nos couros cabeludos, nas nucas, debaixo das pálpebras. O maior pedaço encontrado tinha o tamanho de uma bola de basquete e representava o focinho de um cavalo, marrom contra folhagem verde clara. Estava fincado no peito de um ferreiro que havia, infelizmente, dormido debaixo do telhado inacabado da sua casa na Croix Rousse. E se estamos relembrando compungidos as vítimas históricas dessa tragédia, me deixe mencionar as doze galinhas que morreram de susto com o barulho todo, seus coraçõezinhos explodindo quietamente dois ou três segundos depois da grande explosão de vidro: Paulina, Frangina, Paola, Piolina, Piccolina, Fantine, Martine, Berthe La Poule, Brigida I e Brigida II, a pequena Tommasina e a inesquecível Lola Pamplemousse, com seu famoso requebradinho e seu cocoricó sensual de cigana.