26 de maio de 2009

Drummond



Vomitar este tédio sobre a cidade
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Fonte: C. Drummond de Andrade, in A flor e a náusea.

19 de abril de 2009

Caxangá, o retorno


CLÁUDIO MORENO


Se eu comparasse este jornal às cidades do interior que conheci na infância, esta coluna seria o café junto à praça, ponto central em que nós, filólogos amadores, nos reunimos nas manhãs de sábado para conversar sobre o idioma (amador, aqui, vai no sentido original de quem ama uma atividade e sente prazer em exercê-la). Como minha vocação é mais para o diálogo do que para o monólogo, aproveito, sempre que possível, as achegas que os leitores enviam sobre os temas aqui publicados. Em certos casos, elas são abundantes – especialmente naqueles artigos em que confesso não ter encontrado uma explicação satisfatória para o uso de alguma palavra ou expressão, como ocorreu com "veado" e, agora, com "caxangá".

Agradeço aos que escreveram para lembrar a carreira literária do vocábulo, que figura nos poemas O Motorneiro de Caxangá, de João Cabral do Melo Neto (mencionado por Duilio Bêrni) e Evocação do Recife, de Manuel Bandeira (mencionado por Moacir Xavier). Não poucos informaram que caxangá também aparece em topônimos espalhados por todo o Brasil (é nome de rio, de localidade, de bairro, de avenida, de igarapé, etc.) - mas isso não ajuda a decifrar o enigma dos escravos que "jogavam caxangá". Outros, por sua vez, não contribuíram em nada e ainda me fizeram desconfiar de uma leitura muito apressada da coluna anterior, pois escreveram para dizer que encontraram o termo no dicionário e que ele designa... adivinhem! Um tipo de siri ou caranguejo! Boneca Teresa!

Como estamos no café da praça, era inevitável que algum pau-d’água subisse numa cadeira e entoasse, para alegria geral, o samba do filólogo doido. Segundo ele (suspeito que seja um tremendo gozador), "a aparente musiquinha infantil é, na verdade, uma ode ao homossexualismo. A cantiga vem dos acampamentos militares espartanos, conhecidos por incentivar namoros entre os soldados (!). Jó era um famoso aristocrata (não aquele da Bíblia), amante de Péricles (!)" – e por aí vai ele, derramando uma torrente de asneiras, atropelando, na passagem, toda a obra de Tucídides e de Plutarco. Mas o celerado continua: "O verso Escravos de Jó jogavam caxangá significava que os escravos sexuais de Jó faziam brincadeiras entre eles. Caxangá, em grego vulgar arcaico [Credo!], era uma dança sensual, vinda da Turquia, em que os órgãos sexuais dos dançarinos se tocavam". Do "grego vulgar arcaico" eu até gostei, como piada, mas ainda não consegui entender como é que esta sumidade conseguiu juntar a Turquia, Esparta e Atenas no mesmo balaio da História... Os leitores já devem ter percebido o desfecho disso tudo: o "tira, bota, deixa o Zé Pereira entrar" seria exatamente o que parece ser (entendam Zé Pereira como mais um nome popular daquilo que Luzia levou na horta), enquanto o "guerreiros com guerreiros fazem zigue zigue zá" significa que uns ficam passando os outros nas armas – alternadamente, é claro.

Depois do delírio, finalmente alguma coisa de útil: a leitora Inês Sorgato, de Farroupilha, me informa que sua avó, quase centenária, dizia que caxangá era um jogo praticado por pescadores em dias festivos: formada uma roda de jogadores, "um siri era lançado de um para o outro, vencendo aquele que conseguisse ficar ileso até o final, sem ter os dedos ou as mãos feridas pelas tenazes do bicho. Essa brincadeira era imitada pelas crianças, que jogavam com uma bucha de pano no lugar do siri". A ideia (que falta me faz este acento!) parece muito plausível, embora nada explique por que este jogo, se realmente existiu, ficou invisível para os etnólogos e antropólogos que descreveram os jogos e as diversões populares do nosso país.

Finalmente (o melhor sempre fica por último), Carlos Tadeu Koetz, que se declara nosso "leitor assíduo", cansado de encontrar sempre os mesmos significados para caxangá (siri, gorro de marinheiro, etc.), voltou sua atenção para os escravos de Jó e – bingo! Terminou achando um artigo assinado por Yeda Antonita Pessoa de Castro, especialista em cultura afro-brasileira, que esclarece uma parte do enigma: a letra não fala do Jó do Velho Testamento (o que parecia, realmente, ser uma nota falsa numa cantiga de escravos), mas de njó, palavra do Banto que significa "casa, mais o conjunto de seus moradores". Por oposição aos escravos do eito, os escravos de jó – com minúscula, portanto – eram os escravos domésticos, os quais, exatamente por viverem na casa senhorial, foram os agentes que mais contribuíram para a herança africana que todo brasileiro compartilha, seja nos hábitos familiares, na linguagem, na música, na culinária, na religião e, como não poderia deixar de ser, nos folguedos infantis.

Caxangá


CLÁUDIO MORENO


Um leitor que mora no outro lado do Atlântico pede uma informação que a mim também anda fazendo falta. Diz ele, na sua saborosa sintaxe lusitana: "Vai perdoar a minha ignorância, mas gostava que o Professor me dissesse o que significa a palavra caxangá na cantiga de roda Escravos de Jó, que aprendi no curso de teatro que frequento". Pois não há o que perdoar, amigo, pois vieste bater à porta de alguém que também não sabe. Há muito ando no rastro deste vocábulo, mas sempre acabo entrando em algum beco sem saída...

Segundo consta no Houaiss, o caxangá é simplesmente um dos nomes para o nosso tradicional siri, vizinho do peixe e primo da lagosta; secundariamente, também pode designar uma espécie de gorro de marinheiro. Só isso. Como estás a ver, nenhum dos dois se encaixa nos escravos de Jó que jogavam caxangá. Para piorar, a etimologia fornecida no final do verbete é digna de manicômio: o termo viria do Tupi caá-çangá, que significa "mata extensa"! Antes que tu, tão distante deste nosso exótico mundo tropical, te ponhas a indagar o que tem a ver com isso o siri, ou o gorro, ou os escravos de Jó, aviso-te que a informação provém do confusíssimo Vocabulário Tupi-Guarani-Português, de Silveira Bueno, autor que às vezes sai com uma ideia que parece tirada da unha do pé. Ele defende, por exemplo, que o brasileiríssimo "tá", que usamos para concordar, não é a forma reduzida de está, mas sim um advérbio de origem indígena! Acho que mais não preciso dizer.

Aproveitando que o Google faz uma varredura em mais de trinta milhões de páginas em Português, procurei caxangá, caxengá, caxingá, (depois experimentei todas elas, trocando o X por CH), e não encontrei nada que fizesse sentido como um tipo de jogo. Um desses anônimos da internet levantou, acho eu, um ponto interessante: trata-se de escravos de Jó - portanto, de um personagem da Bíblia, exótico ao Brasil e às etnias indígenas e africanas que formaram nosso povo, o que pode ser um indício de que devemos buscar a origem dessa cantiga em outras línguas ou culturas.

Além disso, é impossível explicar como é que um jogo chamado caxangá só aqui seja mencionado, nunca tendo sido descrito pelos antropólogos e etnólogos que estudaram e estudam as nossas tradições populares. Talvez a investigação possa progredir se imaginarmos que caxangá, aqui, é siri mesmo, e que o vocábulo alterado pela tradição tenha sido exatamente o jogavam. Pode ser que a canção usasse um outro verbo qualquer (juntavam, etc.), que terminou sendo substituido por jogar; pode ser também que o jogavam, aqui, não se refira a "praticar um jogo", mas sim a "lançar" – os escravos lançavam os caxangás no cesto, ou na testa, sei lá.

Se queres saber, isso me parece uma daquelas letras que não tem propriamente sentido, misturando vocábulos reais com vocábulos inventados ou modificados apenas pelo amor da sonoridade e da rima. Foi o que aconteceu com "a tonga da mironga do cabuletê", que não significa nada em língua alguma – ao menos era isso o que Vinícius informava a quem vinha lhe perguntar. Como estávamos em plena da ditadura, no entanto, muitos preferiram acreditar que o poeta tivesse escondido, por trás dessas palavras africanas, uma ofensa ao governo militar. Na internet, onde tudo é possível, corre a lenda (discretamente estimulada pelo parceiro sobrevivente do poeta) de que a tradução seria algo como "o cabelo do c* da mãe", dito em nagô!

É claro que, no contexto, a "tonga da mironga do cabuletê" não é coisa boa, não. A letra termina com os versos "Vou lhe rogar uma praga / Eu vou é mandar você/ Pra tonga da mironga do cabuletê" – mas temos de convir que qualquer expressão colocada ali, naquele lugar, teria uma inegável conotação pejorativa. Lembro que nos tempos de ginásio costumávamos usar a expressão "vai pra planfa que te lamblanfa", nas situações em que era impossível empregar o genuíno "puta que pariu" – e tenho certeza de que os leitores devem conhecer várias outras expressões como essa, que não significam nada, especificamente, mas dizem tudo. A "tonga da mironga" deve ser algo similar.

Assim mesmo, fui conferir no indispensável Novo Dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes, a melhor obra que temos sobre africanismos em nosso idioma. Lá encontrei: (1) tonga (do Quicongo), "força, poder"; (2) mironga (do Quimbundo), "mistério, segredo"; (3) cabuletê (de origem incerta), "indivíduo desprezível, vagabundo". Como vês, são vocábulos que existem, mas provenientes de línguas diferentes, com significados que não têm relação alguma com a música (muito menos com a fantasiosa versão de "cabeludos (literalmente) palavrões em nagô"). Vinícius, com o ouvido que só os poetas têm, simplesmente os escolheu por sua sonoridade e combinou-os numa expressão sem valor semântico, mas de alto poder sugestivo.

15 de março de 2009

Quando domingo era a “primeira feira”


É de João Paulo II a observação de que a língua portuguesa é a única a preservar os nomes cristãos dos dias da semana: segunda-feira, terça-feira etc.: In Lusitano sermone verba similia reperiuntur (Carta apostólica Dies Domini, Nota 22). De acordo com o espírito pastoral do papa Gregório Magno (morto em 604), o cristianismo podia fazer concessões em aspectos acidentais para a conversão dos povos bárbaros, e assim a Páscoa cristã em inglês e alemão leva o nome de uma divindade pagã: Easterl Oster.

Do mesmo modo, os nomes dos dias da semana em outras línguas europeias remetem a divindades pagãs/planetárias, latinas ou bárbaras. Segunda-feira é o dia da lua (lunes, lunedi, lundi, monday, montag); terça é dedicada a Marte; quarta, a Mercúrio (ou a Odin, wednesday); quinta, a Thor (thursday) ou a Júpiter/Jove, ao trovão (Donnerstag); sexta, a Vênus ou Freya. O sábado e o domingo preservam em algumas línguas nomes cristãos ou são dedicados a Saturno (saturday) ou ao Sol (sonntag, sunday).

Mas o que têm nossas feiras (segunda, terça etc.) de cristão? Feria em latim é a palavra para "festa". Como faz notar o teólogo Josef Pascher: para a liturgia, todo dia é dia de festa e, por isso, a liturgia chama o dia comum (que não é comum: é sempre de festa) de feria...

Festa porque o culto cristão – o sacrifício de Cristo, a Santa Missa – se realiza em meio à criação: toda a criação é em cada missa – por Cristo, com Cristo e em Cristo – oferecida ao Pai. Assim a liturgia fala em feria, em festa, porque, em vez das superstições dos astros, celebra a Cristo.

Comentando o Salmo 93 (En. In Ps. 93, 3), S. Agostinho diz: "o primeiro dia depois do sábado é o domingo, dia do Senhor; o segundo é a secunda feria, à que os profanos chamam Lunae diem; a tertia feria, diem illi Martis; a quarta feria é o que os pagãos chamam de dia de Mercúrio (...).

S. Tomás de Aquino ensina (Super Ev. Io. cp 20 lc 1) que o domingo é a "primeira feira", prima feria, por causa da Páscoa: assim como o Gênesis começa com o dia, a Páscoa em que principia o mistério da nova criatura e se renova a face da terra é o Dia, a Feria.

O labirinto do fauno



Você bate em vão com essa aldrava, essa cabeça de cão em cobre, gasta, sem relevos, semelhante à cabeça de um feto canino dos museus de ciências naturais. Imagina que o cão lhe sorri e larga logo o seu contato gélido. A porta cede ao levíssimo empurrão de seus dedos, e antes de entrar olha pela última vez sobre os ombros, franze as sobrancelhas porque uma longa fila parada de caminhões e automóveis chia, apita, solta a fumaça insana de sua pressa. Você tenta inutilmente reter uma única imagem desse mundo exterior indiferente.

Fecha a porta do vestíbulo atrás de si e procura penetrar na escuridão dessa ruela coberta – pátio, porque você pode sentir o musgo, a umidade das plantas, as raízes apodrecidas, o perfume entorpecedor e espesso. Você procura em vão uma luz que o guie. Procura a caixa de fósforos no bolso de seu casaco, porém essa voz aguda e alquebrada o adverte de longe:

– Não... não é necessário. Peço-lhe. Ande treze passos para a frente e encontrará a escada à sua direita. Suba, por favor. São vinte e dois degraus. Conte-os.


Carlos Fuentes – Aura

26 de fevereiro de 2009

Arquétipo ou Marcas mnêmicas












Pã ou Pan, deus grego dos pastores e rebanhos.
Tornou-se, entre os poetas e filósofos, uma das grandes divindades da Natureza.

Seu culto originou-se na Arcádia, espalhou-se pela Grécia e chegou a Roma, onde Pã foi identificado ora com Fauno, ora com Silvano, deus das matas. De sexualidade brutal, sua aparição poderia provocar um medo "pânico". Representado com chifres, cauda e pés de bode, e uma flauta, ele protegia os rebanhos e se divertia com as ninfas.

A imagem de Pã está associada à loucura, ao pânico, à epilepsia e também à masturbação.

Pã se mostra nas poluções noturnas, nos pesadelos, na loucura, no estupro (como metáfora para o desvirginamento da psique), nos encontros eróticos, na sexualidade desviante, e na dificuldade de estabelecer vínculos.

1 de fevereiro de 2009

A Feiticeira de Florença


SALMAN RUSHDIE


À última luz do dia o lago a refulgir abaixo da cidade-palácio parecia um mar de ouro fundido. Um viajante que chegasse por ali ao entardecer — este viajante, chegando por ali agora, por esta estrada à beira do lago — poderia achar que estivesse se aproximando do trono de um monarca tão fabulosamente rico que permite que uma parte de seu tesouro seja vertida numa gigante depressão de terra para deslumbrar e intimidar seus hóspedes. E grande como era o lago de ouro, devia ser apenas uma gota do mar de sua maior fortuna — a imaginação do viajante não conseguia nem imaginar o tamanho do oceano-mãe! Também não havia guardas à beira da água; seria, então, o rei tão generoso que permitia a seus súditos, e talvez até mesmo a estrangeiros e visitantes como o próprio viajante, colher do lago a líquida riqueza? Esse seria, de fato, um príncipe entre os homens, um verdadeiro Preste João, cujo reino perdido de fábula e canção continha maravilhas impossíveis. Talvez (conjeturou o viajante) a fonte da eterna juventude ficasse por trás das muralhas da cidade — talvez até mesmo o legendário portal do Paraíso na Terra ficasse em algum lugar nas redondezas. Mas então o sol desceu abaixo do horizonte, o ouro mergulhou abaixo da superfície da água e se perdeu. Sereias e serpentes o guardariam até voltar a luz do dia. Até então, a água em si seria o único tesouro disponível, uma bênção que o viajante sedento aceitou agradecido.

O estranho estava num carro de bois, mas em vez de ir sentado nas ásperas almofadas de dentro ia em pé, como um deus, apoiado com mão displicente no guarda-corpo da treliça de madeira que emoldurava o carro. O rodar de um carro de bois nunca é macio, o carro de duas rodas pulava e sacudia ao ritmo dos cascos dos animais, sujeito também às irregularidades da estrada sob suas rodas. Mesmo assim, o viajante ia de pé, parecendo despreocupado e contente. O cocheiro desistira havia muito de gritar com ele, primeiro tomando o estrangeiro por um bobo — se queria morrer na estrada, que morresse, porque ninguém naquela terra ia lamentar! Depressa, porém, o desdém do cocheiro deu lugar a uma relutante admiração. O homem podia, sim, ser bobo, podia-se até dizer que tinha uma cara de bobo bonita demais e usava roupas de bobo inadequadas — um casaco de losangos coloridos de couro, naquele calor! — mas seu equilíbrio era impecável, de se admirar. O touro marchava em frente, as rodas do carro nos buracos e pedras, mas o homem de pé mal oscilava e conseguia, de alguma forma, manter a elegância. Um bobo elegante, o cocheiro pensou, ou talvez não fosse bobo nada. Talvez alguém a se respeitar. Se tinha algum defeito, era a ostentação, a vontade de ser não apenas ele próprio mas uma representação de si mesmo e, o cocheiro pensou, porque aqui todo mundo é um pouco assim também, então esse homem não é tão estranho no meio da gente afinal. Bastou o passageiro dizer que estava com sede e o cocheiro se viu indo até a beira da água para buscar bebida para o estrangeiro em um recipiente feito com uma cabaça envernizada que levantou para o outro pegar, como se ele fosse, ora, algum aristocrata que devia ser servido.

"Você fica parado aí feito alguém importante, e eu saio correndo para te servir", disse o cocheiro, de testa franzida. "Não sei por que trato você tão bem. Quem te deu o direto de me dar ordens? O que você é, afinal? Não é um nobre, isso com certeza, senão não ia estar neste carro. Mesmo assim, tem essa pose. Então você deve ser algum tipo de malandro." O outro bebeu sedento na cabaça. A água escorria pelos cantos da boca por seu queixo barbeado como uma barba líquida. Depois, devolveu a cabaça vazia, soltou um suspiro de satisfação e enxugou a barba. "O que eu sou?", perguntou, como se falasse consigo mesmo, mas usando a linguagem do próprio cocheiro. "Eu sou um homem que tem um segredo, isso é o que eu sou — um segredo que só o ouvido do imperador pode ouvir." O cocheiro ficou mais tranqüilo: o sujeito era um bobo, afinal. Não precisava tratá-lo com respeito. "Guarde o seu segredo", disse. "Segredo é coisa de criança, e de espião." O estrangeiro desceu do carro na frente do caravançarai, onde todas as viagens terminavam e começavam. Era surpreendentemente alto e levava uma bolsa de tecido grosso. "E de feiticeiras", disse ele ao cocheiro do carro de bois. "E de amantes também. E de reis."

No caravançarai tudo era alvoroço e barulho. Cuidavam dos animais, cavalos, camelos, bois, burros, cabras, enquanto outros animais, indomáveis, corriam soltos: macacões gritalhões, cachorros que não eram de ninguém. Periquitos explodiam guinchando como fogos de artifício verdes no céu. Os cocheiros trabalhavam, os carpinteiros, e em armazéns nos quatro cantos da enorme praça homens planejavam suas viagens, estocando comida, velas, óleo, sabão e cordas. Cules de turbante, camisas vermelhas e dhotis corriam sem cessar para lá e para cá com trouxas de tamanho e peso inacreditáveis sobre a cabeça. Havia, no geral, muita carga e descarga de mercadorias. Ali se encontrava acomodação barata para a noite, camas de corda e madeira cobertas com espinhosos colchões de crina de cavalo, enfileiradas mili- tarmente sobre os tetos dos prédios de um só andar que cercavam o enorme pátio do caravançarai, camas onde um homem podia deitar, olhar o céu e se imaginar divino. Além, para oeste, ficavam os campos murmurantes dos regimentos do imperador, recémchegados das guerras. O exército não tinha permissão para entrar na zona dos palácios, precisava ficar ali, no sopé do morro real. Um exército desempregado, recém-chegado da batalha, tinha de ser tratado com cautela. O estranho pensou na Roma antiga. Um imperador não confiava em nenhum soldado, a não ser a sua guarda pretoriana. O viajante sabia que a confiança era uma questão que ele teria de tornar convincente. Senão, logo morreria.

Não longe do caravançarai, uma torre cravejada de presas de elefante marcava o rumo do portão do palácio. Todos os elefantes pertenciam ao imperador, e ao fazer uma torre eriçada com suas presas ele demonstrava seu poder. Alerta!, dizia a torre. Você está entrando no reino do Rei Elefante, um soberano tão rico de paquidermes que pode usar os dentes de milhares de animais só para me decorar. Nessa mostra de poder da torre, o viajante reconhecia a mesma qualidade brilhante que luzia em sua própria testa como uma chama, ou uma marca do diabo; mas o homem que levantou a torre transformou em força essa qualidade que no viajante muitas vezes era vista como fraqueza. Será o poder a única justificativa para uma personalidade extrovertida?, o viajante perguntou a si mesmo e não conseguiu responder, porque se viu a esperar que a beleza pudesse ser outra desculpa também, porque ele decerto era bonito e sabia que sua aparência tinha um poder próprio.

Para além da torre de dentes, ficava um grande poço e acima dele uma massa de uma incompreensivelmente complexa maquinaria de água que servia ao palácio de muitas cúpulas sobre o monte. Sem água não somos nada, o viajante pensou. Até mesmo o imperador, privado de água, logo se transformaria em pó. A água é o verdadeiro monarca e nós todos somos seus escravos. Uma vez, em sua terra, em Florença, havia encontrado um homem que sabia fazer a água desaparecer. O mágico enchia uma jarra até a boca, murmurava palavras mágicas, virava a jarra e, em vez de líquido, dela saía pano, uma torrente de lenços de seda coloridos. Era um truque, claro, e antes do fim do dia o viajante havia arrancado do sujeito o seu segredo e o escondera entre seus próprios mistérios. Ele era um homem de muitos segredos, mas apenas um apropriado a um rei.

A estrada para a muralha da cidade subia íngreme pela encosta e ao subir com ela o viajante viu o tamanho do lugar aonde havia chegado. Era evidentemente uma das grandes cidades do mundo, maior, parecia ao seu olhar, do que Florença, Veneza ou Roma, maior do que qualquer cidade que o viajante já havia visto. Ele visitara Londres uma vez; também ela uma metrópole menor que aquela. Com o fim da luz, a cidade pareceu crescer. Densos bairros amontoavam-se fora das muralhas, muezins cantavam de seus minaretes e à distância ele podia ver as luzes de grandes propriedades. Fogos começaram a se acender na penumbra, como alertas. Do bojo negro do céu veio a resposta do fogo das estrelas. Como se a terra e o céu fossem exércitos se preparando para a batalha, pensou. Como se seus acampamentos se aquietassem à noite e esperassem a vinda da guerra do dia. E em toda aquela multiplicidade de ruas e em todas aquelas casas de poderosos, além, nas planícies, não havia um homem que tivesse ouvido seu nome, nem um único que pudesse acreditar de imediato na história que tinha para contar. Mas tinha de contar. Atravessara o mundo para isso, e havia de contar.

Andava a passos largos e atraía muitos olhares curiosos por conta do cabelo amarelo, além de sua altura, o cabelo loiro comprido e inegavelmente sujo esvoaçando em torno do rosto como a água dourada do lago. O caminho subia, passava diante da torre de presas na direção de um portal de pedra com dois elefantes em baixo relevo, um na frente do outro. Por esse portão, que estava aberto, vinham os ruídos de seres humanos brincando, comendo, bebendo, farreando. Havia soldados a postos no portão de Hatyapul, mas em atitude relaxada. As verdadeiras barreiras estavam adiante. Aquele era um local público, um local para reuniões, compras e prazer. Homens apressados ultrapassaram o viajante, levados por fomes e sedes. De ambos os lados da rua calçada entre o portão externo e o interno havia hospedarias, estalagens, barracas de comida e mascates de todo tipo. Ali se dava o negócio eterno de comprar e ser comprado. Roupas, utensílios, bugigangas, armas, rum. O mercado principal ficava além do portão menor, do sul. Os moradores da cidade faziam ali suas compras e evitavam este lugar, que era para recém-chegados ignorantes que não sabiam o preço real das coisas. Aquele era o mercado dos trapaceiros, o mercado dos ladrões, ruidoso, extorsivo, desprezível. Mas viajantes cansados, ignorantes do mapa da cidade e relutantes, de qualquer forma, em caminhar até a muralha externa para o mercado maior e mais justo, não tinham opção senão tratar com os mercadores do portão do elefante. Suas necessidades eram urgentes e simples.



A FEITICEIRA DE FLORENÇA é uma mostra vigorosa de um grande talento do escritor anglo-indiano: Salman Rushdie é um excelente fabulador. Na tradição da Sherazade das Mil e uma Noites, sabe prender o leitor apenas pelo fascínio de uma história bem contada. Com muitos detalhes fantasiosos e exuberantes, A Feiticeira de Florença narra as peripécias de um aventureiro florentino do século XVI que acaba se envolvendo com a feiticeira Qara Köz, que foi amante do xá da Pérsia. Em um instigante jogo de histórias dentro de histórias, a vida de Qara Köz é narrada por outro aventureiro, na corte de um imperador mongol.