28 de março de 2011

Uma frase ao telefone

Liberato Vieira da Cunha


W. caminhava na silente companhia de sua solidão quando avistou na calçada oposta alguém que parecia ser Y. Os cabelos longos e dourados, o porte alto, o corpo magnífico eram os mesmos de 30 anos antes. Há sempre na vida de um homem a mulher inesquecível. Ele jamais deletara da memória as reuniões dançantes de sábado em que formavam um par constante, as longas conversas sobre tudo e nada no pequeno jardim da casa dela, os bailes na Reitoria, em que buscavam a cumplicidade do terraço às escuras, a tarde em que, num chalé de Atlântida, imergiram em entrega e posse, o fim amargo do namoro, resultado direto das intrigas de um rival, conspiração que só foi descobrir muito depois e já não havia volta.

W. apressou o passo, docemente inquieto como um garoto, mas Y. evaporou-se. Simplesmente sumiu de seu alcance, desapareceu, talvez num dos imensos prédios de escritórios, talvez no labirinto do shopping da quadra seguinte. Aquilo lhe doeu. À noite, fechou-se no laboratório e mergulhou em lembranças ternas. Vira-a raríssimas vezes pela eternidade de três décadas. Todas tinham sido ocasiões formais: um casamento, no qual os lugares na igreja e na recepção estavam previamente marcados; uma missa de mês, que não costuma ser um acontecimento romântico; uma estréia de gala, em que ela sentou umas 12 fileiras à frente, bem guardada pelo dono. Em cada um desses encontros, cumprimentaram-se de longe, mas ele não deixou de notar o olhar azul demorando-se nele uns instantes a mais, quem sabe por descuido, pela surpresa, ou para que refletisse: W. já não é aquele rapaz esguio, W. tornou-se um senhor grisalho; ou: estes trajes escuros não combinam com idos amores; são como uma espécie de réquiem. Um dos filhos veio pedir-lhe emprestado o carro, ele estendeu-lhe absorto as chaves. Acabava de recordar o Fairlane vermelho do pai dela e o que havia sucedido no banco de trás certa madrugada, numa época extinta, em que as pessoas estacionavam junto à Redenção ou no belvedere de Santa Teresa, sem o mínimo risco de assalto. Ele pediu a São Cristóvão que o filho não fosse vítima de nenhum seqüestro relâmpago e aí concentrou-se numa circunstância que o tempo vinha apagando: buscara em muitas mulheres os traços, o perfume, um jeito com que Y. sacudia lentamente a cabeça e dizia sorrindo: 10 cruzeiros pela lista completa dos teus pensamentos.

Ele correu a um monte de guias telefônicos, que agora lhe chegavam aos magotes, mas no geral de endereços comerciais. Havia um antigo, residencial, ele achou o número do dono de Y. Acrescentou os novos algarismos de preceito, mas atenderam numa locadora de vídeo. Discou para informações, escutou músicas e publicidade, ao cabo de três minutos uma Valdirene recitou palavras decoradas de cordialidade e indagou em que podia servi-lo. Me serve meus 17 anos, me serve o melhor pedaço de meu passado, me serve Y. no vestido com motivos marinhos, me serve a mulher de minha vida, nua e trajada de desejo. Limitou-se a pedir o telefone do engenheiro K.X.Z. Anotou cuidadosamente e ligou.

Ouviu do outro lado da linha a voz encantadoramente rouca de Y.
– Sou W. – falou, e não descobriu mais nada para dizer.
E então, feito música, lhe chegou uma frase:
– Dez cruzeiros pela lista completa dos teus pensamentos.