26 de novembro de 2007
Nelson Rodrigues e o óbvio ululante
O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: — o da imaturidade.
Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhoras que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.
Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de "ilustre", de "insigne", de "formidável" qualquer borra-botas.
A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.
O brasileiro não está preparado para ser "o maior do mundo" em coisa nenhuma. Ser "o maior do mundo" em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.
Há na aeromoça a nostalgia de quem vai morrer cedo. Reparem como vê as coisas com a doçura de um último olhar.
Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível.
O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.
Assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria.
Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.
O boteco é ressoante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele.
A mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades.
Outro dia ouvi um pai dizer, radiante: — "Eu vi pílulas anticoncepcionais na bolsa da minha filha de doze anos!". Estava satisfeito, com o olho rútilo. Veja você que paspalhão!
Em nosso século, o "grande homem" pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta.
O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.
Toda mulher bonita leva em si, como uma lesão da alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma.
Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.
Chegou às redações a notícia da minha morte. E os bons colegas trataram de fazer a notícia. Se é verdade o que de mim disseram os necrológios, com a generosa abundância de todos os necrológios, sou de fato um bom sujeito.
22 de novembro de 2007
A pornografia começou com a Vênus de Willendorf?
RUBEM FONSECA
A mais antiga representação conhecida de um ser humano é a Vênus de Willendorf, uma mulher nua da época paleolítica, esculpida em calcário, com cerca de onze centímetros de altura e provavelmente vinte mil anos de idade.
Assim a descreveu J. Szombathy, um dos seus descobridores:
"A escultura representa uma mulher gorda, inchada, com grandes glândulas mamárias, uma barriga saliente, cadeiras e coxas grossas [...] Os labia minora estão claramente indicados [...] Toda figura mostra que o artista possuía um excelente domínio da forma humana e que deliberadamente enfatizou as partes referentes à função reprodutora".
O rosto - olhos, nariz, boca - é pouco definido. Pode-se dizer que o artista, ao representar a figura humana da Vênus de Willendorf de maneira distorcida, planejou produzir não apenas a primeira escultura como também a primeira "caricatura" (do italiano caricare, exagerar) conhecida.
A caricatura surgiu realmente na Renascença e na Reforma, ainda que já tivesse existido no Egito antigo e na Grécia, porém sem relevância. Leonardo, Holbein, Dürer, Brueghel, Bosch fizeram caricatura, mas os especialistas afirmam que ela teria começado com Agostino Carrucci, nascido em Bolonha em 1557 e falecido em Parma antes de completar quarenta e cinco anos. É interessante notar que existe outra escultura do mesmo período aurinhacense em que foi esculpida a Willendorf, só que alguns mil anos mais nova, a Vênus de Brassempouy, cuja forma, apesar de mutilada, permite supor uma acentuada e caricatural linha esteatopígica.
Seria esse escultor da Idade da Pedra que esculpiu a Vênus de Willendorf destacando e deformando as suas características sexuais "o primeiro artista pornográfico da História", como querem alguns? "Mesmo comparada com as construções repelentes que os antropólogos fazem da mulher de Neanderthal, a Vênus de Willendorf é simplesmente repulsiva", disse um historiador. Repulsiva? Por terem sido realçados os seus órgãos sexuais, certamente. O conceito de pornografia tem variado no tempo e no espaço, mas sempre subordinado ao corpo humano, sua nudez e suas secreções e excreções - esperma, fezes, urina -, refletindo o preconceito antibiológico presente, em maior ou menor grau, em quase toda a história da civilização. É comum ouvir-se, hoje, de maneira lamuriante na maioria das vezes, que esse tabu milenar não existiria mais, principalmente nas sociedades urbanas, depois que a ciência e os meios de divulgação se encarregaram de desmitificá-lo. ("O único ato sexual anormal é aquele que você não pode realizar", Kinsey.) O critério de moralidade, dizem, teria sofrido profundas modificações, e pornografia (como sinônimo de obscenidade) não mais se aplicaria ao corpo e ao sexo. O surgimento de "novas pornografias"- a da morte, a da violência, a da miséria - comprovaria esse ponto de vista. A liberdade sexual teria sido afinal conquistada.
Na verdade, o preconceito não cessou de existir. "A liberdade sexual acabou virando uma nova forma de puritanismo. Eu defino puritanismo como um estado de alienação: a emoção separada da razão, o corpo usado como máquina" (Rollo May). Muitos alegam que o cinema, o teatro e a literatura nunca tiveram tanta franquia para exibir as obras "repulsivamente mais pornográficas". Para essas pessoas, entre as quais se incluem escritores, educadores, sociólogos, filósofos, "a pornografia deve ser controlada porque é uma fantasia infantil sem fundamento na realidade, um sonho sórdido em que o sexo é separado do seu contexto humano". A utilização da censura não podia deixar de ser defendida por essas pessoas: "Se tolerarmos a pornografia e não permitirmos que a censura a restrinja, nossa sociedade se tornará cada vez mais vulgar, brutal, ansiosa, indiferente, desumana e, afinal, poderá se desintegrar totalmente" (Ernest van den Haag). Curioso o ponto de vista de um escritor que, no seu horror à pornografia, disse isto: "Como um ato contra a sociedade, escrever, publicar e distribuir um livro como Trópico de Câncer é mais grave do que escrever, publicar e distribuir um panfleto que advogue a derrubada violenta do governo" (George P. Elliot). Outra curiosidade: o decreto-lei nº 1077, de 28 de janeiro de 1970, usado para proibir a publicação e a circulação de livros no Brasil - Feliz Ano Novo foi um deles -, diz, numa das suas justificativas, que as manifestações contrárias à moral e aos bons costumes, que pretende coibir, "fazem parte de um plano subversivo que põe em risco a segurança nacional".
Cabe aqui uma pequena digressão. A censura não deve ser encarada apenas como a ação reacionária e obscurantista de certas agências e agentes do Estado. A censura é um subsistema cultural (e ideológico) que serve para preservar os valores que uma determinada cultura considera ameaçados. O agente do Estado não passa de alguém que "trata do negócio por conta alheia", ainda que exorbite, muitas vezes - e quanto mais autoritário o Estado, mais oportunidade têm o agente e a agência de desviarem-se da norma. Mas não é preciso que se excedam "os justos limites da regra" para reprimir o comportamento individual ou a manifestação artística. Os piores censores são aqueles que obedecem estritamente à norma do sistema cultural dominante. A literatura, evidentemente, não tem escapado dessa ação repressiva. O caso Moors, ocorrido na Inglaterra, em que dois criminosos, um homem e uma mulher, mataram suas vítimas com requintes de crueldade, foi usado como prova definitiva e exemplar da influência deletéria da literatura pornográfica, devido ao fato de o assassino, de nome Brady, ser leitor e admirador de Sade. Mas, como disse Anthony Burgess, "uma natureza perversa pode ser estimulada por qualquer coisa. Um assassino de crianças, nos Estados Unidos, confessou que ao cometer os crimes fora inspirado pelo episódio de Abraão e Isaac no Velho Testamento. Proibindo-se o Marquês de Sade, a Bíblia teria também que ser proibida, pelos mesmos motivos".
Pesquisa feita na Brown University comprovou que a pornografia não tem a menor influência prejudicial sobre as pessoas. Na verdade, quer seja encarada do ponto de vista da história social, da psicologia ou da arte ("perspectivas essenciais" do fenômeno, conforme Susan Sontag), ela nunca será realmente nociva. Certo tipo de pessoa pode até se beneficiar da pornografia, tanto mental como emocionalmente. (E também comercialmente, como editores, distribuidores e autores...)
Teriam existido e sido destruídas pelos defensores da moral, dos bons costumes, do bom gosto, outras Vênus de Willendorf? Por querer dizer o indizível e mostrar o invisível (aquilo que não deve ser visto), os artistas começaram a sofrer na Idade da Pedra. Mas esses milhares de séculos de coerção não foram fortes e longos o suficiente para destruir no artista a sua coragem de criar - uma das maiores virtudes do ser humano.
Fonte: Rubem Fonseca in O Romance Morreu.
3 de novembro de 2007
Provérbios do Inferno
WILLIAM BLAKE
No tempo de semeadura, aprende; na colheita, ensina, e no inverno, goza.
Conduz teu carro e teu arado sobre a ossada dos mortos.
O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.
A Prudência é uma velha donzela, rica e feia, cortejada pela Incapacidade.
Aquele que deseja e não age engendra a peste.
O verme perdoa o arado que o parte.
Imerge nas correntes o que delicia-se com as águas.
O tolo não vê a mesma árvore que o sábio.
A Eternidade vive enamorada dos frutos do tempo.
À laboriosa abelha não sobra tempo para tristezas.
As horas de tolice, mede-as o relógio; as de sabedoria, porém, não há relógio que as meça.
Todo alimento sadio se colhe sem redes ou ardis.
Toma número, peso & medida em ano de míngua.
Ave alguma se eleva a grande altura, se se eleva com suas próprias asas.
Um cadáver não revida agravos.
Se persistisse em sua tolice, o tolo sábio se tornaria.
A tolice é o manto da malandrice.
O manto do orgulho, a vergonha.
As masmorras são erguidas com as pedras da Lei; bordéis, com os tijolos da Religião.
A altivez do pavão é a glória de Deus.
A lascívia do bode é a dádiva de Deus.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra de Deus.
O excesso de pranto ri. O excesso de riso chora.
O rugir de leões, o uivo de lobos, a fúria do mar em procela e a espada devastadora são fragmentos de eternidade demasiado grandes para o olho humano.
A raposa culpa o ardil, jamais a si mesma.
O gozo fecunda. A tristeza dá a luz.
Vista o homem a pele do leão. E a mulher, o velo da ovelha.
A ave, um ninho; a aranha, uma teia; o homem, a amizade.
O tolo egoísta e risonho & o tolo sisudo e obstinado serão ambos tidos como sábios para servirem de azougue.
O que hoje é evidência outrora foi imaginário.
O rato, o camundongo, a raposa e o coelho espreitam as raízes; o leão, o tigre, o cavalo e o elefante espreitam os frutos.
A cisterna contém, a fonte transborda.
Um pensamento abarca a imensidão.
Estejas sempre pronto a dar a tua opinião, e os vis te evitarão.
Tudo o que é passível de crença é uma imagem da verdade.
Nunca a águia perdeu tanto tempo, como quando se dispôs a aprender com a gralha.
A raposa a si mesma supre, mas Deus supre o leão.
Pela manhã, meditai. Ao meio-dia, agi. Ao entardecer, comei. À noite, dormi.
Quem sofreu o teu domínio te conhece.
Os tigres da ira sabem mais que os cavalos da instrução.
Espere veneno da água estagnada.
Jamais saberás o que é suficiente, se não souberes o que é mais que suficiente.
Ouve a crítica do tolo. É um nobre elogio.
Os olhos, de fogo; as narinas, de ar; a boca, de água; a barba, de terra.
O fraco em coragem é forte em astúcia.
A macieira jamais indaga à faia como crescer, nem o leão ao cavalo como agarrar sua presa.
Seríamos tolos, se outros já não o fossem.
A alma imersa em delícias jamais será maculada.
Ergue a cabeça ao avistares uma águia. Estarás vendo uma parcela do Gênio.
Assim como a lagarta escolhe as melhores folhas para depositar seus ovos, o sacerdote arroja suas maldições sobre as mais sublimes alegrias.
Criar uma pequena flor é labor de séculos.
Maldição tensiona. Bênção relaxa.
O melhor vinho é o mais velho; a melhor água, a mais nova.
Como o ar ao pássaro, e o mar ao peixe, o desprezo ao desprezível.
Quisera o corvo que tudo fosse negro; e puro alvor, a coruja.
Exuberância é beleza.
Se o leão seguisse os conselhos da raposa, seria astuto. O aprimoramento endireita os caminhos, mas as sendas rudes e tortuosas são as do Gênio.
Quem não irradia luz jamais será uma estrela. Como o arado segue seu comando, Deus recompensa as preces.
Teu ato mais sublime é até outro elevar-te.
Preces não aram, louvores não colhem.
Cabeça, o Sublime; Coração, o Pathos; Genitais, a Beleza; Mãos & Pés, a Proporção.
Alegrias não riem. Tristezas não choram. É melhor matar a criança no berço que acalentar desejos irrealizáveis.
Quem grato recebe, abundante colheita obtém.
Onde é ausente o homem, é estéril a natureza.
A verdade jamais pode ser proferida de modo compreensível, sem que nela se creia.
Suficiente! ou Demasiado.
Fonte: William Blake in O casamento do Céu e do Inferno.
1 de novembro de 2007
Ulrica
Jorge Luis Borges
Hann tekr sverthit Gram ok
leggr i methal theira bert.
Völsunga Saga, 27
leggr i methal theira bert.
Völsunga Saga, 27
Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha recordação da realidade, o que é a mesma coisa. Os fatos ocorreram faz muito pouco, mas sei que o hábito literário é assim o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases. Quero narrar meu encontro com Ulrica (nunca soube seu sobrenome e talvez não o saberei nunca) na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.
Nada me custaria referir que a vi pela primeira vez junto às cinco irmãs de York, esses vitrais puros de toda imagem que respeitaram os iconoclastas de Cromwell, mas o fato é que nos conhecemos na salinha da Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu uma taça e recusou.
– Sou feminista – disse. – Não quero imitar aos homens. Me desagradam seu tabaco e seu álcool.
A frase queria ser engenhosa e adivinhei que não era a primeira vez que a pronunciava. Soube depois que não era característica dela, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.
Comentou que havia chegado tarde ao museu, mas que a deixaram entrar quando souberam que era noruega.
Um dos presentes comentou:
– Não é a primeira vez que os noruegos entram em York.
– Assim é – disse ela. – Inglaterra foi nossa e a perdemos, se alguém pode ter algo ou algo pode perder-se.
Foi então que a olhei. Uma linha de William Blake fala de garotas de suave prata e de furioso ouro, mas em Ulrica estavam o ouro e a suavidade. Era magra e alta, de traços afilados e de olhos cinzentos. Menos que seu rosto me impressionou seu ar de tranqüilo mistério. Sorria facilmente e o sorriso parecia distanciá-la. Vestia-se de negro, o que é raro nas terras do norte, que tratam de alegrar com cores o apagado do âmbito. Falava um inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres. Não sou observador; essas coisas as descobri pouco a pouco.
Nos apresentaram. Lhe disse que era professor na Universidade dos Andes em Bogotá. Esclareci que era colombiano.
Me perguntou de um modo pensativo:
– O que é ser colombiano?
– Não sei – respondi. – É um ato de fé.
– Como ser noruega – assentiu.
Nada mais posso recordar do que se disse essa noite. No dia seguinte desci cedo ao refeitório. Pelos cristais vi que havia nevado; os páramos se perdiam na manhã. Não havia ninguém mais. Ulrica me convidou à sua mesa. Disse-me que gostava de sair a caminhar sozinha.
Recordei uma broma de Schopenhauer e contestei:
– A mim também. Podemos sair juntos os dois.
Nos distanciamos da casa, sobre a neve jovem. Não havia uma alma nos campos. Lhe propus que fôssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a umas milhas. Sei que já estava enamorado de Ulrica; não haveria desejado ao meu lado nenhuma outra pessoa.
Ouvi prontamente o distante uivo de um lobo. Não ouvi nunca uivar um lobo, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.
Em um instante disse como se pensasse em voz alta:
– As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster me comoveram mais que as grandes naus do museu de Oslo.
Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, essa tarde, prosseguiria a viagem até Londres; eu, até Edimburgo.
– Em Oxford Street – me disse – repetirei os passos de De Quincey, que buscava sua Anna perdida entre as multidões de Londres.
– De Quincey – respondi – deixou de buscá-la. Eu, ao largo do tempo, sigo buscando-a.
– Talvez – disse em voz baixa – a encontrastes.
Compreendi que uma coisa inesperada não me estava proibida e beijei-lhe a boca e os olhos. Me apartou com suave firmeza e logo declarou:
– Serei tua na pousada de Thorgate. Te peço que até então não me toques. É melhor que seja assim.
Para um homem solitário entrado em anos, o oferecido amor é um dom que já não se espera. O milagre tem direito a impor condições. Pensei em minhas mocidades de Popayán e em uma garota do Texas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.
Não incorri no erro de perguntar-lhe se me queria. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Essa aventura, talvez a última para mim, seria uma de tantas para essa resplandecente e esbelta discípula de Ibsen.
De mãos dadas seguimos.
– Tudo isto é como um sonho – disse – e eu nunca sonho.
– Como aquele rei – replicou Ulrica – que não dormiu até que um feiticeiro lhe fez dormir numa pocilga.
Agregou depois:
– Ouve bem. Um pássaro está por cantar.
Em um breve instante ouvimos o canto.
– Nestas terras – disse –, pensam que quem está para morrer pode prever o futuro.
– E eu estou para morrer – disse ela.
Mirei-a atônito.
– Cortemos pelo bosque – urgi. – Chegaremos mais rapidamente a Thorgate.
– O bosque é perigoso – replicou.
Seguimos pelos páramos.
Eu gostaria que este momento durasse para sempre – murmurei.
– Sempre é uma palavra que não está permitida aos homens – afirmou Ulrica e, para diminuir a ênfase, me pediu que repetisse meu nome, que não havia ouvido bem.
– Javier Otárola – lhe disse.
Quis repeti-lo e não pôde. Fracassei, igualmente, com o nome de Ulrikke.
– Te chamarei Sigurd – declarou com um sorriso.
– Se sou Sigurd – repliquei –, tu serás Brynhild.
Havia diminuído o passo.
– Conheces a saga? – lhe perguntei.
– Sem dúvida – me disse. – A trágica história que os alemães arruinaram com seus tardios Nibelungos.
Não quis discutir e lhe respondi:
– Brynhild, caminhas como se quisesses que entre nós dois houvesse uma espada no leito.
Estávamos de golpe ante à pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn.
Desde o alto da escadinha, Ulrica me gritou:
– Ouviste ao lobo? Já não restam lobos na Inglaterra. Apressa-te.
Ao subir ao piso alto, notei que as paredes estavam empapeladas à maneira de William Morris, de um vermelho muito profundo, com entrelaçados frutos e pássaros. Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era baixo, com um teto de duas águas. O esperado leito se duplicava em um vago cristal e a escovada caoba me recordou o espelho da Escritura. Ulrica já se havia despido. Me chamou por meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve arrefecia. Já não restavam móveis nem espelhos. Não havia uma espada entre nós dois. Como a areia se ia o tempo. Secular na sombra fluiu o amor e possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.
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