1 de novembro de 2007

Ulrica


Jorge Luis Borges
Hann tekr sverthit Gram ok
leggr i methal theira bert.
Völsunga Saga, 27


Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha recordação da realidade, o que é a mesma coisa. Os fatos ocorreram faz muito pouco, mas sei que o hábito literário é assim o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases. Quero narrar meu encontro com Ulrica (nunca soube seu sobrenome e talvez não o saberei nunca) na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.

Nada me custaria referir que a vi pela primeira vez junto às cinco irmãs de York, esses vitrais puros de toda imagem que respeitaram os iconoclastas de Cromwell, mas o fato é que nos conhecemos na salinha da Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu uma taça e recusou.

– Sou feminista – disse. – Não quero imitar aos homens. Me desagradam seu tabaco e seu álcool.
A frase queria ser engenhosa e adivinhei que não era a primeira vez que a pronunciava. Soube depois que não era característica dela, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.

Comentou que havia chegado tarde ao museu, mas que a deixaram entrar quando souberam que era noruega.
Um dos presentes comentou:
– Não é a primeira vez que os noruegos entram em York.
– Assim é – disse ela. – Inglaterra foi nossa e a perdemos, se alguém pode ter algo ou algo pode perder-se.

Foi então que a olhei. Uma linha de William Blake fala de garotas de suave prata e de furioso ouro, mas em Ulrica estavam o ouro e a suavidade. Era magra e alta, de traços afilados e de olhos cinzentos. Menos que seu rosto me impressionou seu ar de tranqüilo mistério. Sorria facilmente e o sorriso parecia distanciá-la. Vestia-se de negro, o que é raro nas terras do norte, que tratam de alegrar com cores o apagado do âmbito. Falava um inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres. Não sou observador; essas coisas as descobri pouco a pouco.

Nos apresentaram. Lhe disse que era professor na Universidade dos Andes em Bogotá. Esclareci que era colombiano.
Me perguntou de um modo pensativo:
– O que é ser colombiano?
– Não sei – respondi. – É um ato de fé.
– Como ser noruega – assentiu.

Nada mais posso recordar do que se disse essa noite. No dia seguinte desci cedo ao refeitório. Pelos cristais vi que havia nevado; os páramos se perdiam na manhã. Não havia ninguém mais. Ulrica me convidou à sua mesa. Disse-me que gostava de sair a caminhar sozinha.
Recordei uma broma de Schopenhauer e contestei:
– A mim também. Podemos sair juntos os dois.

Nos distanciamos da casa, sobre a neve jovem. Não havia uma alma nos campos. Lhe propus que fôssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a umas milhas. Sei que já estava enamorado de Ulrica; não haveria desejado ao meu lado nenhuma outra pessoa.
Ouvi prontamente o distante uivo de um lobo. Não ouvi nunca uivar um lobo, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.

Em um instante disse como se pensasse em voz alta:
– As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster me comoveram mais que as grandes naus do museu de Oslo.
Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, essa tarde, prosseguiria a viagem até Londres; eu, até Edimburgo.
– Em Oxford Street – me disse – repetirei os passos de De Quincey, que buscava sua Anna perdida entre as multidões de Londres.
– De Quincey – respondi – deixou de buscá-la. Eu, ao largo do tempo, sigo buscando-a.
– Talvez – disse em voz baixa – a encontrastes.
Compreendi que uma coisa inesperada não me estava proibida e beijei-lhe a boca e os olhos. Me apartou com suave firmeza e logo declarou:
– Serei tua na pousada de Thorgate. Te peço que até então não me toques. É melhor que seja assim.

Para um homem solitário entrado em anos, o oferecido amor é um dom que já não se espera. O milagre tem direito a impor condições. Pensei em minhas mocidades de Popayán e em uma garota do Texas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.
Não incorri no erro de perguntar-lhe se me queria. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Essa aventura, talvez a última para mim, seria uma de tantas para essa resplandecente e esbelta discípula de Ibsen.
De mãos dadas seguimos.

– Tudo isto é como um sonho – disse – e eu nunca sonho.
– Como aquele rei – replicou Ulrica – que não dormiu até que um feiticeiro lhe fez dormir numa pocilga.
Agregou depois:
– Ouve bem. Um pássaro está por cantar.
Em um breve instante ouvimos o canto.
– Nestas terras – disse –, pensam que quem está para morrer pode prever o futuro.
– E eu estou para morrer – disse ela.
Mirei-a atônito.
– Cortemos pelo bosque – urgi. – Chegaremos mais rapidamente a Thorgate.
– O bosque é perigoso – replicou.
Seguimos pelos páramos.
Eu gostaria que este momento durasse para sempre – murmurei.
– Sempre é uma palavra que não está permitida aos homens – afirmou Ulrica e, para diminuir a ênfase, me pediu que repetisse meu nome, que não havia ouvido bem.
– Javier Otárola – lhe disse.
Quis repeti-lo e não pôde. Fracassei, igualmente, com o nome de Ulrikke.
– Te chamarei Sigurd – declarou com um sorriso.
– Se sou Sigurd – repliquei –, tu serás Brynhild.

Havia diminuído o passo.
– Conheces a saga? – lhe perguntei.
– Sem dúvida – me disse. – A trágica história que os alemães arruinaram com seus tardios Nibelungos.
Não quis discutir e lhe respondi:
– Brynhild, caminhas como se quisesses que entre nós dois houvesse uma espada no leito.
Estávamos de golpe ante à pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn.
Desde o alto da escadinha, Ulrica me gritou:
– Ouviste ao lobo? Já não restam lobos na Inglaterra. Apressa-te.

Ao subir ao piso alto, notei que as paredes estavam empapeladas à maneira de William Morris, de um vermelho muito profundo, com entrelaçados frutos e pássaros. Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era baixo, com um teto de duas águas. O esperado leito se duplicava em um vago cristal e a escovada caoba me recordou o espelho da Escritura. Ulrica já se havia despido. Me chamou por meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve arrefecia. Já não restavam móveis nem espelhos. Não havia uma espada entre nós dois. Como a areia se ia o tempo. Secular na sombra fluiu o amor e possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.

Um comentário:

  1. Cacilda, reconheço na postagem a minha tradução desse texto tão bonito do Borges, sobre o qual ele mesmo escreveu no Libro de Arena: "O tema do amor é muito comum em meus versos; não é assim em minha prosa, que não guarda outro exemplo que Ulrica". Fico feliz que gostastes do texto e quisestes compartilhá-lo. Achei muito especial a tua escolha dos "Provérbios do Inferno" do Blake, texto que sempre me chamou a atenção também. Tu conheces o poema "Fragmentos de um Evangelho Apócrifo" que está no "Elogia da Sombra" do Borges? Se tu gosta do Blake certamente vai gostar desse. Um abração!

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