22 de novembro de 2007

A pornografia começou com a Vênus de Willendorf?


RUBEM FONSECA


A mais antiga representação conhecida de um ser humano é a Vênus de Willendorf, uma mulher nua da época paleolítica, esculpida em calcário, com cerca de onze centímetros de altura e provavelmente vinte mil anos de idade.
Assim a descreveu J. Szombathy, um dos seus descobridores:


"A escultura representa uma mulher gorda, inchada, com grandes glândulas mamárias, uma barriga saliente, cadeiras e coxas grossas [...] Os labia minora estão claramente indicados [...] Toda figura mostra que o artista possuía um excelente domínio da forma humana e que deliberadamente enfatizou as partes referentes à função reprodutora".

O rosto - olhos, nariz, boca - é pouco definido. Pode-se dizer que o artista, ao representar a figura humana da Vênus de Willendorf de maneira distorcida, planejou produzir não apenas a primeira escultura como também a primeira "caricatura" (do italiano caricare, exagerar) conhecida.


A caricatura surgiu realmente na Renascença e na Reforma, ainda que já tivesse existido no Egito antigo e na Grécia, porém sem relevância. Leonardo, Holbein, Dürer, Brueghel, Bosch fizeram caricatura, mas os especialistas afirmam que ela teria começado com Agostino Carrucci, nascido em Bolonha em 1557 e falecido em Parma antes de completar quarenta e cinco anos. É interessante notar que existe outra escultura do mesmo período aurinhacense em que foi esculpida a Willendorf, só que alguns mil anos mais nova, a Vênus de Brassempouy, cuja forma, apesar de mutilada, permite supor uma acentuada e caricatural linha esteatopígica.


Seria esse escultor da Idade da Pedra que esculpiu a Vênus de Willendorf destacando e deformando as suas características sexuais "o primeiro artista pornográfico da História", como querem alguns? "Mesmo comparada com as construções repelentes que os antropólogos fazem da mulher de Neanderthal, a Vênus de Willendorf é simplesmente repulsiva", disse um historiador. Repulsiva? Por terem sido realçados os seus órgãos sexuais, certamente. O conceito de pornografia tem variado no tempo e no espaço, mas sempre subordinado ao corpo humano, sua nudez e suas secreções e excreções - esperma, fezes, urina -, refletindo o preconceito antibiológico presente, em maior ou menor grau, em quase toda a história da civilização. É comum ouvir-se, hoje, de maneira lamuriante na maioria das vezes, que esse tabu milenar não existiria mais, principalmente nas sociedades urbanas, depois que a ciência e os meios de divulgação se encarregaram de desmitificá-lo. ("O único ato sexual anormal é aquele que você não pode realizar", Kinsey.) O critério de moralidade, dizem, teria sofrido profundas modificações, e pornografia (como sinônimo de obscenidade) não mais se aplicaria ao corpo e ao sexo. O surgimento de "novas pornografias"- a da morte, a da violência, a da miséria - comprovaria esse ponto de vista. A liberdade sexual teria sido afinal conquistada.


Na verdade, o preconceito não cessou de existir. "A liberdade sexual acabou virando uma nova forma de puritanismo. Eu defino puritanismo como um estado de alienação: a emoção separada da razão, o corpo usado como máquina" (Rollo May). Muitos alegam que o cinema, o teatro e a literatura nunca tiveram tanta franquia para exibir as obras "repulsivamente mais pornográficas". Para essas pessoas, entre as quais se incluem escritores, educadores, sociólogos, filósofos, "a pornografia deve ser controlada porque é uma fantasia infantil sem fundamento na realidade, um sonho sórdido em que o sexo é separado do seu contexto humano". A utilização da censura não podia deixar de ser defendida por essas pessoas: "Se tolerarmos a pornografia e não permitirmos que a censura a restrinja, nossa sociedade se tornará cada vez mais vulgar, brutal, ansiosa, indiferente, desumana e, afinal, poderá se desintegrar totalmente" (Ernest van den Haag). Curioso o ponto de vista de um escritor que, no seu horror à pornografia, disse isto: "Como um ato contra a sociedade, escrever, publicar e distribuir um livro como Trópico de Câncer é mais grave do que escrever, publicar e distribuir um panfleto que advogue a derrubada violenta do governo" (George P. Elliot). Outra curiosidade: o decreto-lei nº 1077, de 28 de janeiro de 1970, usado para proibir a publicação e a circulação de livros no Brasil - Feliz Ano Novo foi um deles -, diz, numa das suas justificativas, que as manifestações contrárias à moral e aos bons costumes, que pretende coibir, "fazem parte de um plano subversivo que põe em risco a segurança nacional".

Cabe aqui uma pequena digressão. A censura não deve ser encarada apenas como a ação reacionária e obscurantista de certas agências e agentes do Estado. A censura é um subsistema cultural (e ideológico) que serve para preservar os valores que uma determinada cultura considera ameaçados. O agente do Estado não passa de alguém que "trata do negócio por conta alheia", ainda que exorbite, muitas vezes - e quanto mais autoritário o Estado, mais oportunidade têm o agente e a agência de desviarem-se da norma. Mas não é preciso que se excedam "os justos limites da regra" para reprimir o comportamento individual ou a manifestação artística. Os piores censores são aqueles que obedecem estritamente à norma do sistema cultural dominante. A literatura, evidentemente, não tem escapado dessa ação repressiva. O caso Moors, ocorrido na Inglaterra, em que dois criminosos, um homem e uma mulher, mataram suas vítimas com requintes de crueldade, foi usado como prova definitiva e exemplar da influência deletéria da literatura pornográfica, devido ao fato de o assassino, de nome Brady, ser leitor e admirador de Sade. Mas, como disse Anthony Burgess, "uma natureza perversa pode ser estimulada por qualquer coisa. Um assassino de crianças, nos Estados Unidos, confessou que ao cometer os crimes fora inspirado pelo episódio de Abraão e Isaac no Velho Testamento. Proibindo-se o Marquês de Sade, a Bíblia teria também que ser proibida, pelos mesmos motivos".

Pesquisa feita na Brown University comprovou que a pornografia não tem a menor influência prejudicial sobre as pessoas. Na verdade, quer seja encarada do ponto de vista da história social, da psicologia ou da arte ("perspectivas essenciais" do fenômeno, conforme Susan Sontag), ela nunca será realmente nociva. Certo tipo de pessoa pode até se beneficiar da pornografia, tanto mental como emocionalmente. (E também comercialmente, como editores, distribuidores e autores...)

Teriam existido e sido destruídas pelos defensores da moral, dos bons costumes, do bom gosto, outras Vênus de Willendorf? Por querer dizer o indizível e mostrar o invisível (aquilo que não deve ser visto), os artistas começaram a sofrer na Idade da Pedra. Mas esses milhares de séculos de coerção não foram fortes e longos o suficiente para destruir no artista a sua coragem de criar - uma das maiores virtudes do ser humano.


Fonte: Rubem Fonseca in O Romance Morreu.

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