Liberato Vieira da Cunha
W. caminhava na silente companhia de sua solidão quando avistou na calçada oposta alguém que parecia ser Y. Os cabelos longos e dourados, o porte alto, o corpo magnífico eram os mesmos de 30 anos antes. Há sempre na vida de um homem a mulher inesquecível. Ele jamais deletara da memória as reuniões dançantes de sábado em que formavam um par constante, as longas conversas sobre tudo e nada no pequeno jardim da casa dela, os bailes na Reitoria, em que buscavam a cumplicidade do terraço às escuras, a tarde em que, num chalé de Atlântida, imergiram em entrega e posse, o fim amargo do namoro, resultado direto das intrigas de um rival, conspiração que só foi descobrir muito depois e já não havia volta.
W. apressou o passo, docemente inquieto como um garoto, mas Y. evaporou-se. Simplesmente sumiu de seu alcance, desapareceu, talvez num dos imensos prédios de escritórios, talvez no labirinto do shopping da quadra seguinte. Aquilo lhe doeu. À noite, fechou-se no laboratório e mergulhou em lembranças ternas. Vira-a raríssimas vezes pela eternidade de três décadas. Todas tinham sido ocasiões formais: um casamento, no qual os lugares na igreja e na recepção estavam previamente marcados; uma missa de mês, que não costuma ser um acontecimento romântico; uma estréia de gala, em que ela sentou umas 12 fileiras à frente, bem guardada pelo dono. Em cada um desses encontros, cumprimentaram-se de longe, mas ele não deixou de notar o olhar azul demorando-se nele uns instantes a mais, quem sabe por descuido, pela surpresa, ou para que refletisse: W. já não é aquele rapaz esguio, W. tornou-se um senhor grisalho; ou: estes trajes escuros não combinam com idos amores; são como uma espécie de réquiem. Um dos filhos veio pedir-lhe emprestado o carro, ele estendeu-lhe absorto as chaves. Acabava de recordar o Fairlane vermelho do pai dela e o que havia sucedido no banco de trás certa madrugada, numa época extinta, em que as pessoas estacionavam junto à Redenção ou no belvedere de Santa Teresa, sem o mínimo risco de assalto. Ele pediu a São Cristóvão que o filho não fosse vítima de nenhum seqüestro relâmpago e aí concentrou-se numa circunstância que o tempo vinha apagando: buscara em muitas mulheres os traços, o perfume, um jeito com que Y. sacudia lentamente a cabeça e dizia sorrindo: 10 cruzeiros pela lista completa dos teus pensamentos.
Ele correu a um monte de guias telefônicos, que agora lhe chegavam aos magotes, mas no geral de endereços comerciais. Havia um antigo, residencial, ele achou o número do dono de Y. Acrescentou os novos algarismos de preceito, mas atenderam numa locadora de vídeo. Discou para informações, escutou músicas e publicidade, ao cabo de três minutos uma Valdirene recitou palavras decoradas de cordialidade e indagou em que podia servi-lo. Me serve meus 17 anos, me serve o melhor pedaço de meu passado, me serve Y. no vestido com motivos marinhos, me serve a mulher de minha vida, nua e trajada de desejo. Limitou-se a pedir o telefone do engenheiro K.X.Z. Anotou cuidadosamente e ligou.
Ouviu do outro lado da linha a voz encantadoramente rouca de Y.
– Sou W. – falou, e não descobriu mais nada para dizer.
E então, feito música, lhe chegou uma frase:
– Dez cruzeiros pela lista completa dos teus pensamentos.
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