Jean-Paul Sartre
Lulu dormia nua não só porque gostava de se acariciar com as cobertas, mas também porque lavagem de roupa custa caro. A princípio Henri protestou: não se deve dormir nu, isto não se faz, é nojento. Acabou, porém, por comodismo, seguindo o exemplo da mulher; ele era inflexível como uma estaca quando se achava no meio de outras pessoas (admirava os suíços e particularmente os genebrinos, achava-os altivos porque eram impassíveis), mas negligenciava as pequenas coisas, por exemplo: não era muito asseado, raramente mudava de cueca; quando Lulu as punha na roupa suja, não podia deixar de observar o seu fundo amarelado à força de roçar contra o rego das nádegas. Pessoalmente, Lulu não se incomodava com a sujeira: dá um ar de intimidade, cria certos sombreados familiares. No côncavo dos cotovelos, por exemplo. Não gostava dos ingleses, de seus corpos sem personalidade, sem nenhum cheiro. Sentia, porém, horror às negligências do marido, porque refletiam um carinho excessivo por si próprio. De manhã, ao acordar, ele se sentia sempre terno, tinha a cabeça cheia de sonhos, e o dia claro, a água fria, o pêlo áspero das escovas lhe faziam o efeito de brutais injustiças.
Lulu, deitada de costas, introduziu o dedão do pé esquerdo em uma dobra do cobertor; não era dobra, mas um descosturado, o que a aborreceu: vai ser preciso costurar isto amanhã; continuava, porém, mexendo no tecido, para senti-lo esgarçar-se. Henri não estava dormindo, mas não se mexia. Ele sempre dizia a Lulu que, assim que fechava os olhos, se sentia amarrado por liames fortes e resistentes, não conseguindo sequer levantar o dedinho. Uma grande mosca presa numa teia de aranha. Lulu gostava de sentir contra si aquele grande corpo cativo. Se ele pudesse ficar assim paralisado, seria eu quem cuidaria dele, quem o limparia como a uma criança; de vez em quando virá-lo-ia de bruços, dar-lhe-ia umas palmadas e outras vezes, quando sua mãe o viesse ver, eu o descobriria com um pretexto qualquer, retiraria as cobertas, e sua mãe o veria inteiramente nu. Penso que ela ficaria estática, deve fazer uns quinze anos que não o vê assim. Lulu passou a mão levemente sobre o quadril do marido e o beliscou levemente na virilha. Henri gemeu, mas não fez o menor movimento. Estava reduzido à impotência. Lulu sorriu: a palavra “impotência” fazia-a sempre sorrir. No tempo em que ainda amava Henri, quando ele repousava assim imóvel, a seu lado, ela se divertia em imaginá-lo pacientemente ensalsichado por anõezinhos do gênero daqueles que tinha visto numa estampa, quando, em pequena, lia a história de Gulliver. Sempre chamava Henri de “Gulliver”, e ele gostava porque era um nome inglês, e Lulu tinha então o jeito de uma pessoa instruída; teria preferido, porém, que ela pronunciasse aquele nome corretamente. Como isso me amolava! Se desejava uma moça instruída, devia ter casado com Jeanne Beder, que tem seios em forma de buzina, mas sabe cinco línguas. Quando íamos a Sceaux, aos domingos, eu me aborrecia tanto com sua família, que abria um livro qualquer; havia sempre alguém que vinha olhar o que eu estava lendo, e sua irmãzinha me perguntava: “Está compreendendo, Lucie?...” Ele não me acha culta. Os suíços sim, são gente culta, porque sua irmã mais velha se casou com um, que lhe deu cinco filhos, e além disso eles o impressionam com suas montanhas. Eu não posso ter filhos, é da minha constituição, mas nunca achei correto o que ele faz quando sai comigo; vai a todos os mictórios, e eu sou obrigada a olhar vitrinas enquanto espero, bancando a boba. Quando ele volta, vem repuxando as calças e arqueando as pernas como um velho.
Lulu retirou o dedo da fenda do cobertor e agitou um pouco os pés, pelo prazer de se sentir acordada perto daquela carne mole e cativa. Ouviu um gru-gru: um ventre que faz barulho me aborrece porque nunca posso saber se é o seu ou o meu. Fechou os olhos: são líquidos que gorgolejam nas tripas, todo mundo tem isso, Rirette, eu (não gosto de pensar nisso, me dá dor de barriga). Ele me ama, mas não ama minhas tripas; se lhe mostrassem meu apêndice num vidro, não o reconheceria; ele vive a me apalpar, mas se lhe pusessem o vidro nas mãos não sentiria nada intimamente, não pensaria: “isto é dela”; deveríamos poder amar tudo de uma pessoa, o esôfago, o fígado, os intestinos. Talvez não gostemos dessas coisas por falta de hábito; se as víssemos como vemos nossas mãos e nossos braços, talvez as amássemos; é por isso que as estrelas-do-mar devem amar-se melhor que nós; elas se estendem sobre a praia quando faz sol e põem fora o estômago para fazê-lo tomar ar, e todos podem vê-lo; eu me pergunto por onde faríamos sair o nosso, pelo umbigo, talvez. Ela fechou os olhos, e os discos azuis começaram a girar, como na feira, ontem, quando eu atirava flechas de borracha nos discos e as letras se acendiam a cada golpe, formando um nome da cidade; ele me impediu de formar “Dijon”, com sua mania de se encostar às minhas nádegas; detesto que me toquem por trás, desejava não ter costas, não gosto que me façam certas coisas quando não as vejo; eles podem gozar sem que se lhes vejam as mãos; a gente as sente subindo e descendo, mas não pode prever aonde vão, eles olham a gente à vontade, e a gente não os pode ver, ele adora isso; Henri nunca pensou em fazer essas coisas, ele só quer saber de se encostar nas minhas nádegas, e estou convencida de que ele me pega no traseiro de propósito, porque sabe que morro de vergonha de ter um, e o fato de eu ter vergonha o excita, mas não quero pensar em Rirette. Ela pensava em Rirette todas as noites à mesma hora, justamente no momento em que Henri começava a balbuciar coisas sem nexo e a gemer. Mas houve resistência, o outro queria mostrar-se, ela chegou mesmo a ver, num instante, uns cabelos negros e crespos, pensou que ia acontecer e arrepiou-se, porque nunca se sabe até onde a coisa vai; se é só o rosto, ainda bem; isso passa, mas houve noites em que ela não conseguiu fechar os olhos por causa de nojentas lembranças que emergiam à superfície; é medonho quando se conhece tudo de um homem, principalmente aquilo. Henri não é a mesma coisa, posso imaginá-lo da cabeça aos pés, isso me enternece porque ele é mole, tem a pele branca, com exceção da do ventre, que é rosada, ele diz que o ventre de um homem bem-feito, quando ele está sentado, faz três pregas; o seu porém tem seis, só que ele as conta de duas em duas e não quer ver as outras. Ela sentiu uma irritação, pensando em Rirette: “Lulu, você não sabe o que é um belo corpo de homem”. É ridículo, naturalmente, eu sei o que é, ela quer dizer um corpo duro como pedra, com músculos, não gosto disso, Patterson tinha um corpo assim, e eu me sentia mole como uma lagarta quando ele me apertava; casei-me com Henri porque ele era mole, porque se assemelhava a um padre. Os padres, com suas batinas, são macios como as mulheres e parece que usam roupas de baixo. Quando eu tinha quinze anos, queria levantar devagarinho suas batinas para ver-lhes os joelhos e as cuecas, parecia-me estranho que tivessem alguma coisa entre as pernas; com uma das mãos eu pegaria a batina, fazendo a outra escorregar ao longo das pernas, subindo até o lugar em que penso; não é que eu goste assim tanto das mulheres, mas uma coisa de homem, quando está debaixo de uma saia, é delicada, é como se fosse uma grande flor. Na realidade, nunca se pode segurar aquilo; se ao menos ficasse tranqüilo, mas começa a se mexer como um animal, endurece, me dá medo, quando fica duro e teso no ar, é bestial; como é nojento o amor! Amei Henri porque sua coisinha jamais endurecia, não levantava nunca a cabeça, eu sorria, acariciava-a algumas vezes, tinha tanto medo dela como de uma criança; à noite eu pegava essa deliciosa coisinha entre os dedos, ele ficava corado, virava a cabeça para o lado, suspirando, mas aquilo não se mexia, continuava bem quieto em minha mão, eu não o apertava, permanecíamos longo tempo assim, e ele adormecia. Eu então me deitava de costas e pensava em padres, em coisas puras, em mulheres, primeiro acariciava meu ventre, minha barriga bonita e chata, descia as mãos, continuava descendo até sentir prazer; não há quem saiba me dar prazer como eu mesma.
(...)