2 de março de 2008
Coletivos
CLÁUDIO MORENO
É surpreendente o número de consultas que ainda recebo sobre coletivos raros ou desusados. Geralmente elas provêm daqueles pais que estão tentando ajudar seus filhos a fazer os deveres escolares, mas desesperam quando não encontram o vocábulo adequado para designar um conjunto de pinhões, de diplomas, de tecidos ou de fracassos. Pudera não! Só com muita pesquisa eles chegariam a esses coletivos, que são, respectivamente, penisco, espicilégio, fanca e cafife - termos que brilham por sua desimportância e por sua inutilidade.
Há muito se deixou de levar a sério o estudo desta espécie de substantivo. Os que realmente interessam não precisam de explicação: o enxame de abelhas, a nuvem de gafanhotos, a manada de elefantes, o cardume de tainhas. Aqueles coletivos específicos, porém, tão estudados no passado, caíram quase todos em desuso. Os leitores mais vividos devem recordar: várias cabras formavam um fato; os camelos, uma cáfila; os porcos não deixavam por menos e formavam uma vara, e os lobos andavam uivando em alcatéias. Ora, se eles se referiam a seres determinados, como diziam os livros escolares, por que acrescentar, ao lado do coletivo, o nome do respectivo animal? Por que expressões como "fato de cabras" ou "cardume de peixes" não são consideradas pleonasmos? Para encontrar a surpreendente resposta, basta ler as obras dos escritores clássicos: o fato não era só de cabras, mas também de vacas, de ovelhas e de reses; a cáfila podia ser também de cães, de bandidos, de salteadores e de rebeldes; o cardume podia não ser de peixes, mas de mouros, de inimigos, de homens, de mariposas e de sereias!
Outra causa, além dessa imprecisão de origem, explica por que essas antigas denominações estão desaparecendo aos poucos: o Português prefere usar, para expressar a idéia coletiva, sufixos extremamente produtivos como -ada, -eiro, -ria, -edo, que se ligam diretamente ao nome do ser ou do objeto a que o termo se refere. Diante de derivações transparentes como boiada, porcada, alunado, formigueiro, maquinaria, arvoredo, buraqueira, pulguedo, etc., nenhum falante terá dificuldade em identificar os seres designados.
Também não podemos esquecer que esses antigos coletivos específicos são pouco numerosos, pois só têm sentido quando se trata de animais gregários, que costumam viver junto com os de sua espécie. Não precisamos ter um coletivo para a tartaruga, a cotia, o jacaré, o tatu, a lesma, o tamanduá, o bicho-preguiça e o canguru, pois são animais que não costumam aparecer em grandes grupos. Se necessitarmos designar um conjunto desses animais, vamos recorrer aos chamados coletivos genéricos (que, na verdade, terminam sendo usados para tudo, até mesmo para o porco, o camelo e a cabra, que tinham os seus coletivos específicos): bando, grupo, manada, rebanho, etc. Esses vocábulos estão ficando tão polivalentes que encontrei uma definição de cambada que poderia figurar naquela absurda enciclopédia chinesa citada por J. L. Borges: "cambada de caranguejos, chaves reunidas, gente ordinária, malfeitores, objetos enfiados em cordão, peixes, vadios e vagabundos".
No tempo em que se levava a sério essa chorumela toda, ainda tínhamos de agüentar, de inhapa, discussões colaterais (e profundamente científicas...) como aquela que vetava o emprego de cardume como coletivo de baleia sob a alegação de que baleia não é peixe. E daí? Câmara Cascudo registrou a antiga tradição brasileira de dar nomes de peixe ao cachorro, a fim de protegê-lo da raiva. Por isso é comum, no interior do Brasil, cachorro chamado Piranha, Cação, Toninha, Tubarão, Siri; aqui no Sul já vi Tainha, Lambari, Jundiá. É evidente que a biologia popular considera peixe tudo o que está no mar; daí a Toninha (outro nome para o boto) e o Siri estarem incluídos na relação. O exemplo mais famoso desse elástico conceito é a simpática cadelinha Baleia, do Vidas Secas. No velho e bom Morais (1813), a baleia é descrita como "peixe marinho muito grande; tem a boca quase na testa, o coiro negro, e duro, grandes barbatanas, mamas, e é vivípara, solta de tempos a tempos grandes espadanas de água, que jorram muito alto". Peixe com mamas... De qualquer forma, a baleia é, até hoje, considerada peixe por grande parte de nosso povo, e continua a viver alegremente em cardumes, porque a língua não se prende, necessariamente, às classificações científicas.
Cláudio Moreno é professor, doutor em Letras.
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Que texto lindo, muito bem escrito, didático sem ser enfadonho e poético! Palmas para o autor! Assim dá gosto conhecer mais a língua portuguesa (ou brasileira, sei lá...).
ResponderExcluirqual é o coletivo de tartarugas
ResponderExcluirisso que e quero saner