27 de julho de 2011

Filosofia mundana à la Chamfort


A melhor filosofia, em relação ao mundo, consiste em aliar o sarcasmo da graça à indulgência do desprezo.

O homem, no estado atual da sociedade, parece-me ser mais corrompido por sua razão do que por suas paixões. Suas paixões (e aqui me refiro àquelas que pertencem ao homem primitivo) conservaram, na ordem social, o pouco de natureza que nela ainda encontramos.

A sociedade não consiste, como estamos habituados a acreditar, no desenvolvimento da natureza, mas sim na sua decomposição e na sua completa transformação. Trata-se de um segundo edifício construído com os escombros do primeiro. Nele descobrimos seus destroços com um sentimento no qual o prazer confunde-se com a surpresa. É o prazer que gera a expressão ingênua de um sentimento natural, que acaba vazando para a sociedade. Ocorre mesmo de ele agradar mais, se a pessoa da qual esse sentimento escapa for de uma posição elevada, ou seja, mais distante da natureza. Num rei, ele nos encanta porque o rei encontra-se numa extremidade oposta. Ele é um escombro de uma antiga arquitetura dórica ou coríntia num edifício grosseiro e moderno.

No teatro, busca-se o efeito; mas o que diferencia o poeta bom do ruim é o fato de o primeiro querer obter o efeito lançando mão de meios razoáveis, enquanto que ao segundo todos os meios parecem excelentes. Nisso, são como os cavalheiros e os velhacos, que desejam ambos fazer fortuna: os primeiros só empregam meios honestos, e, os outros, toda espécie de meios.

Frequentemente uma opinião, um costume, parece-nos absurdo na primeira juventude e, conforme avançamos vida afora, passamos a ver sentido nele: ele nos parece menos absurdo. Disso deveríamos concluir que certos costumes são menos ridículos? Seríamos levados a pensar que eles foram estabelecidos por pessoas que leram até o fim o livro da vida, e que elas são julgadas por pessoas que, apesar de espirituosas, só leram dele algumas páginas.

É uma bela alegoria, na Bíblia, esta que fala da árvore do conhecimento do bem e do mal e que leva à morte. Esta figura simbólica não significa que, assim que penetramos na essência das coisas, a perda das ilusões conduz à morte da alma, ou seja, ao desinteresse completo por tudo que diz respeito e que interessa aos outros homens?

Não fico mais espantado por ver um homem cansado da fama, do que por ver um outro incomodado com o barulho que se faz na sua ante-sala.

Quantos militares de prestígio, quantos generais são mortos, sem terem transmitido seus nomes à posteridade: nisso foram menos felizes que Bucéfalo, e mesmo que o cão de fila espanhol Berecillo, que devorava os índios de São Domingos e recebia o soldo de três soldados!

É de se desejar a preguiça de um homem mau e o silêncio de um tolo.

Máximas e Pensamentos, de Sébastien-Roch-Nicolas Chamfort (1741-1794).

5 de julho de 2011

Cinemateca


Nossa Música, de Jean-Luc Godard:

Notre musique, 2004
Matar uma pessoa para defender uma idéia não é defender uma idéia, é matar uma pessoa.

— Por que é que as revoluções não são feitas pelos homens mais humanos?
— Porque os homens mais humanos não fazem revoluções; eles estão mais ocupados lendo livros e fazendo bibliotecas.

O Comunismo existiu somente duas vezes durante dois tempos de 45 minutos: quando a Hungria venceu a Inglaterra por 6-3, no estádio de Wembley, em novembro de 1953. Os ingleses jogaram cada um por si; os húngaros jogaram juntos.

Fala-se sempre muito da chave do problema, mas nunca da fechadura.

2 de julho de 2011

Intimidade

Jean-Paul Sartre


Lulu dormia nua não só porque gostava de se acariciar com as cobertas, mas também porque lavagem de roupa custa caro. A princípio Henri protestou: não se deve dormir nu, isto não se faz, é nojento. Acabou, porém, por comodismo, seguindo o exemplo da mulher; ele era inflexível como uma estaca quando se achava no meio de outras pessoas (admirava os suíços e particularmente os genebrinos, achava-os altivos porque eram impassíveis), mas negligenciava as pequenas coisas, por exemplo: não era muito asseado, raramente mudava de cueca; quando Lulu as punha na roupa suja, não podia deixar de observar o seu fundo amarelado à força de roçar contra o rego das nádegas. Pessoalmente, Lulu não se incomodava com a sujeira: dá um ar de intimidade, cria certos sombreados familiares. No côncavo dos cotovelos, por exemplo. Não gostava dos ingleses, de seus corpos sem personalidade, sem nenhum cheiro. Sentia, porém, horror às negligências do marido, porque refletiam um carinho excessivo por si próprio. De manhã, ao acordar, ele se sentia sempre terno, tinha a cabeça cheia de sonhos, e o dia claro, a água fria, o pêlo áspero das escovas lhe faziam o efeito de brutais injustiças.
 
Lulu, deitada de costas, introduziu o dedão do pé esquerdo em uma dobra do cobertor; não era dobra, mas um descosturado, o que a aborreceu: vai ser preciso costurar isto amanhã; continuava, porém, mexendo no tecido, para senti-lo esgarçar-se. Henri não estava dormindo, mas não se mexia. Ele sempre dizia a Lulu que, assim que fechava os olhos, se sentia amarrado por liames fortes e resistentes, não conseguindo sequer levantar o dedinho. Uma grande mosca presa numa teia de aranha. Lulu gostava de sentir contra si aquele grande corpo cativo. Se ele pudesse ficar assim paralisado, seria eu quem cuidaria dele, quem o limparia como a uma criança; de vez em quando virá-lo-ia de bruços, dar-lhe-ia umas palmadas e outras vezes, quando sua mãe o viesse ver, eu o descobriria com um pretexto qualquer, retiraria as cobertas, e sua mãe o veria inteiramente nu. Penso que ela ficaria estática, deve fazer uns quinze anos que não o vê assim. Lulu passou a mão levemente sobre o quadril do marido e o beliscou levemente na virilha. Henri gemeu, mas não fez o menor movimento. Estava reduzido à impotência. Lulu sorriu: a palavra “impotência” fazia-a sempre sorrir. No tempo em que ainda amava Henri, quando ele repousava assim imóvel, a seu lado, ela se divertia em imaginá-lo pacientemente ensalsichado por anõezinhos do gênero daqueles que tinha visto numa estampa, quando, em pequena, lia a história de Gulliver. Sempre chamava Henri de “Gulliver”, e ele gostava porque era um nome inglês, e Lulu tinha então o jeito de uma pessoa instruída; teria preferido, porém, que ela pronunciasse aquele nome corretamente. Como isso me amolava! Se desejava uma moça instruída, devia ter casado com Jeanne Beder, que tem seios em forma de buzina, mas sabe cinco línguas. Quando íamos a Sceaux, aos domingos, eu me aborrecia tanto com sua família, que abria um livro qualquer; havia sempre alguém que vinha olhar o que eu estava lendo, e sua irmãzinha me perguntava: “Está compreendendo, Lucie?...” Ele não me acha culta. Os suíços sim, são gente culta, porque sua irmã mais velha se casou com um, que lhe deu cinco filhos, e além disso eles o impressionam com suas montanhas. Eu não posso ter filhos, é da minha constituição, mas nunca achei correto o que ele faz quando sai comigo; vai a todos os mictórios, e eu sou obrigada a olhar vitrinas enquanto espero, bancando a boba. Quando ele volta, vem repuxando as calças e arqueando as pernas como um velho.
 
Lulu retirou o dedo da fenda do cobertor e agitou um pouco os pés, pelo prazer de se sentir acordada perto daquela carne mole e cativa. Ouviu um gru-gru: um ventre que faz barulho me aborrece porque nunca posso saber se é o seu ou o meu. Fechou os olhos: são líquidos que gorgolejam nas tripas, todo mundo tem isso, Rirette, eu (não gosto de pensar nisso, me dá dor de barriga). Ele me ama, mas não ama minhas tripas; se lhe mostrassem meu apêndice num vidro, não o reconheceria; ele vive a me apalpar, mas se lhe pusessem o vidro nas mãos não sentiria nada intimamente, não pensaria: “isto é dela”; deveríamos poder amar tudo de uma pessoa, o esôfago, o fígado, os intestinos. Talvez não gostemos dessas coisas por falta de hábito; se as víssemos como vemos nossas mãos e nossos braços, talvez as amássemos; é por isso que as estrelas-do-mar devem amar-se melhor que nós; elas se estendem sobre a praia quando faz sol e põem fora o estômago para fazê-lo tomar ar, e todos podem vê-lo; eu me pergunto por onde faríamos sair o nosso, pelo umbigo, talvez. Ela fechou os olhos, e os discos azuis começaram a girar, como na feira, ontem, quando eu atirava flechas de borracha nos discos e as letras se acendiam a cada golpe, formando um nome da cidade; ele me impediu de formar “Dijon”, com sua mania de se encostar às minhas nádegas; detesto que me toquem por trás, desejava não ter costas, não gosto que me façam certas coisas quando não as vejo; eles podem gozar sem que se lhes vejam as mãos; a gente as sente subindo e descendo, mas não pode prever aonde vão, eles olham a gente à vontade, e a gente não os pode ver, ele adora isso; Henri nunca pensou em fazer essas coisas, ele só quer saber de se encostar nas minhas nádegas, e estou convencida de que ele me pega no traseiro de propósito, porque sabe que morro de vergonha de ter um, e o fato de eu ter vergonha o excita, mas não quero pensar em Rirette. Ela pensava em Rirette todas as noites à mesma hora, justamente no momento em que Henri começava a balbuciar coisas sem nexo e a gemer. Mas houve resistência, o outro queria mostrar-se, ela chegou mesmo a ver, num instante, uns cabelos negros e crespos, pensou que ia acontecer e arrepiou-se, porque nunca se sabe até onde a coisa vai; se é só o rosto, ainda bem; isso passa, mas houve noites em que ela não conseguiu fechar os olhos por causa de nojentas lembranças que emergiam à superfície; é medonho quando se conhece tudo de um homem, principalmente aquilo. Henri não é a mesma coisa, posso imaginá-lo da cabeça aos pés, isso me enternece porque ele é mole, tem a pele branca, com exceção da do ventre, que é rosada, ele diz que o ventre de um homem bem-feito, quando ele está sentado, faz três pregas; o seu porém tem seis, só que ele as conta de duas em duas e não quer ver as outras. Ela sentiu uma irritação, pensando em Rirette: “Lulu, você não sabe o que é um belo corpo de homem”. É ridículo, naturalmente, eu sei o que é, ela quer dizer um corpo duro como pedra, com músculos, não gosto disso, Patterson tinha um corpo assim, e eu me sentia mole como uma lagarta quando ele me apertava; casei-me com Henri porque ele era mole, porque se assemelhava a um padre. Os padres, com suas batinas, são macios como as mulheres e parece que usam roupas de baixo. Quando eu tinha quinze anos, queria levantar devagarinho suas batinas para ver-lhes os joelhos e as cuecas, parecia-me estranho que tivessem alguma coisa entre as pernas; com uma das mãos eu pegaria a batina, fazendo a outra escorregar ao longo das pernas, subindo até o lugar em que penso; não é que eu goste assim tanto das mulheres, mas uma coisa de homem, quando está debaixo de uma saia, é delicada, é como se fosse uma grande flor. Na realidade, nunca se pode segurar aquilo; se ao menos ficasse tranqüilo, mas começa a se mexer como um animal, endurece, me dá medo, quando fica duro e teso no ar, é bestial; como é nojento o amor! Amei Henri porque sua coisinha jamais endurecia, não levantava nunca a cabeça, eu sorria, acariciava-a algumas vezes, tinha tanto medo dela como de uma criança; à noite eu pegava essa deliciosa coisinha entre os dedos, ele ficava corado, virava a cabeça para o lado, suspirando, mas aquilo não se mexia, continuava bem quieto em minha mão, eu não o apertava, permanecíamos longo tempo assim, e ele adormecia. Eu então me deitava de costas e pensava em padres, em coisas puras, em mulheres, primeiro acariciava meu ventre, minha barriga bonita e chata, descia as mãos, continuava descendo até sentir prazer; não há quem saiba me dar prazer como eu mesma.
(...)

1 de julho de 2011

Livro do Desassossego [1]


Peristilo

Às horas em que a paisagem é uma auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos numa casa abandonada.

Colhi para escrevê-lo a alma de todas as flores, e dos momentos efêmeros de todos os cantos de todas as aves, teci eternidade e estagnação. Tecedeira, sentei-me à janela da minha vida e esqueci que habitava e era, tecendo lençóis para o meu tédio amortalhar nas toalhas de linho casto para os altares do meu silêncio, e eu ofereço-te este livro porque sei que ele é belo e inútil. Nada ensina, nada faz crer, nada faz sentir. Regato que corre para um abismo-cinza que o vento espalha e nem fecunda nem é daninho – pus toda a alma em fazê-lo, mas não pensei nele fazendo-o, mas só em mim que sou triste e em ti que não és ninguém.

E porque este livro é absurdo, eu o amo; porque é inútil, eu o quero dar; e porque de nada serve querer to dar, eu to dou...

Reza por mim o lê-lo, abençoa-me de amá-lo e esquece-o como o Sol de hoje ao Sol de ontem (como eu esqueço aquelas mulheres nos sonhos que nunca soube sonhar).

Torre do Silêncio das minhas ânsias, que este livro seja o luar que te fez outra na noite do Mistério Antigo!

Rio de Imperfeição dolorida, que este livro seja o barco deixado ir por tuas águas abaixo para acabar mar que se sonhe.

Paisagem de Alheamento e de Abandono, que este livro seja teu como a tua Hora e se ilimite de ti como da Hora de púrpura falsa.