19 de abril de 2009

Caxangá, o retorno


CLÁUDIO MORENO


Se eu comparasse este jornal às cidades do interior que conheci na infância, esta coluna seria o café junto à praça, ponto central em que nós, filólogos amadores, nos reunimos nas manhãs de sábado para conversar sobre o idioma (amador, aqui, vai no sentido original de quem ama uma atividade e sente prazer em exercê-la). Como minha vocação é mais para o diálogo do que para o monólogo, aproveito, sempre que possível, as achegas que os leitores enviam sobre os temas aqui publicados. Em certos casos, elas são abundantes – especialmente naqueles artigos em que confesso não ter encontrado uma explicação satisfatória para o uso de alguma palavra ou expressão, como ocorreu com "veado" e, agora, com "caxangá".

Agradeço aos que escreveram para lembrar a carreira literária do vocábulo, que figura nos poemas O Motorneiro de Caxangá, de João Cabral do Melo Neto (mencionado por Duilio Bêrni) e Evocação do Recife, de Manuel Bandeira (mencionado por Moacir Xavier). Não poucos informaram que caxangá também aparece em topônimos espalhados por todo o Brasil (é nome de rio, de localidade, de bairro, de avenida, de igarapé, etc.) - mas isso não ajuda a decifrar o enigma dos escravos que "jogavam caxangá". Outros, por sua vez, não contribuíram em nada e ainda me fizeram desconfiar de uma leitura muito apressada da coluna anterior, pois escreveram para dizer que encontraram o termo no dicionário e que ele designa... adivinhem! Um tipo de siri ou caranguejo! Boneca Teresa!

Como estamos no café da praça, era inevitável que algum pau-d’água subisse numa cadeira e entoasse, para alegria geral, o samba do filólogo doido. Segundo ele (suspeito que seja um tremendo gozador), "a aparente musiquinha infantil é, na verdade, uma ode ao homossexualismo. A cantiga vem dos acampamentos militares espartanos, conhecidos por incentivar namoros entre os soldados (!). Jó era um famoso aristocrata (não aquele da Bíblia), amante de Péricles (!)" – e por aí vai ele, derramando uma torrente de asneiras, atropelando, na passagem, toda a obra de Tucídides e de Plutarco. Mas o celerado continua: "O verso Escravos de Jó jogavam caxangá significava que os escravos sexuais de Jó faziam brincadeiras entre eles. Caxangá, em grego vulgar arcaico [Credo!], era uma dança sensual, vinda da Turquia, em que os órgãos sexuais dos dançarinos se tocavam". Do "grego vulgar arcaico" eu até gostei, como piada, mas ainda não consegui entender como é que esta sumidade conseguiu juntar a Turquia, Esparta e Atenas no mesmo balaio da História... Os leitores já devem ter percebido o desfecho disso tudo: o "tira, bota, deixa o Zé Pereira entrar" seria exatamente o que parece ser (entendam Zé Pereira como mais um nome popular daquilo que Luzia levou na horta), enquanto o "guerreiros com guerreiros fazem zigue zigue zá" significa que uns ficam passando os outros nas armas – alternadamente, é claro.

Depois do delírio, finalmente alguma coisa de útil: a leitora Inês Sorgato, de Farroupilha, me informa que sua avó, quase centenária, dizia que caxangá era um jogo praticado por pescadores em dias festivos: formada uma roda de jogadores, "um siri era lançado de um para o outro, vencendo aquele que conseguisse ficar ileso até o final, sem ter os dedos ou as mãos feridas pelas tenazes do bicho. Essa brincadeira era imitada pelas crianças, que jogavam com uma bucha de pano no lugar do siri". A ideia (que falta me faz este acento!) parece muito plausível, embora nada explique por que este jogo, se realmente existiu, ficou invisível para os etnólogos e antropólogos que descreveram os jogos e as diversões populares do nosso país.

Finalmente (o melhor sempre fica por último), Carlos Tadeu Koetz, que se declara nosso "leitor assíduo", cansado de encontrar sempre os mesmos significados para caxangá (siri, gorro de marinheiro, etc.), voltou sua atenção para os escravos de Jó e – bingo! Terminou achando um artigo assinado por Yeda Antonita Pessoa de Castro, especialista em cultura afro-brasileira, que esclarece uma parte do enigma: a letra não fala do Jó do Velho Testamento (o que parecia, realmente, ser uma nota falsa numa cantiga de escravos), mas de njó, palavra do Banto que significa "casa, mais o conjunto de seus moradores". Por oposição aos escravos do eito, os escravos de jó – com minúscula, portanto – eram os escravos domésticos, os quais, exatamente por viverem na casa senhorial, foram os agentes que mais contribuíram para a herança africana que todo brasileiro compartilha, seja nos hábitos familiares, na linguagem, na música, na culinária, na religião e, como não poderia deixar de ser, nos folguedos infantis.

Caxangá


CLÁUDIO MORENO


Um leitor que mora no outro lado do Atlântico pede uma informação que a mim também anda fazendo falta. Diz ele, na sua saborosa sintaxe lusitana: "Vai perdoar a minha ignorância, mas gostava que o Professor me dissesse o que significa a palavra caxangá na cantiga de roda Escravos de Jó, que aprendi no curso de teatro que frequento". Pois não há o que perdoar, amigo, pois vieste bater à porta de alguém que também não sabe. Há muito ando no rastro deste vocábulo, mas sempre acabo entrando em algum beco sem saída...

Segundo consta no Houaiss, o caxangá é simplesmente um dos nomes para o nosso tradicional siri, vizinho do peixe e primo da lagosta; secundariamente, também pode designar uma espécie de gorro de marinheiro. Só isso. Como estás a ver, nenhum dos dois se encaixa nos escravos de Jó que jogavam caxangá. Para piorar, a etimologia fornecida no final do verbete é digna de manicômio: o termo viria do Tupi caá-çangá, que significa "mata extensa"! Antes que tu, tão distante deste nosso exótico mundo tropical, te ponhas a indagar o que tem a ver com isso o siri, ou o gorro, ou os escravos de Jó, aviso-te que a informação provém do confusíssimo Vocabulário Tupi-Guarani-Português, de Silveira Bueno, autor que às vezes sai com uma ideia que parece tirada da unha do pé. Ele defende, por exemplo, que o brasileiríssimo "tá", que usamos para concordar, não é a forma reduzida de está, mas sim um advérbio de origem indígena! Acho que mais não preciso dizer.

Aproveitando que o Google faz uma varredura em mais de trinta milhões de páginas em Português, procurei caxangá, caxengá, caxingá, (depois experimentei todas elas, trocando o X por CH), e não encontrei nada que fizesse sentido como um tipo de jogo. Um desses anônimos da internet levantou, acho eu, um ponto interessante: trata-se de escravos de Jó - portanto, de um personagem da Bíblia, exótico ao Brasil e às etnias indígenas e africanas que formaram nosso povo, o que pode ser um indício de que devemos buscar a origem dessa cantiga em outras línguas ou culturas.

Além disso, é impossível explicar como é que um jogo chamado caxangá só aqui seja mencionado, nunca tendo sido descrito pelos antropólogos e etnólogos que estudaram e estudam as nossas tradições populares. Talvez a investigação possa progredir se imaginarmos que caxangá, aqui, é siri mesmo, e que o vocábulo alterado pela tradição tenha sido exatamente o jogavam. Pode ser que a canção usasse um outro verbo qualquer (juntavam, etc.), que terminou sendo substituido por jogar; pode ser também que o jogavam, aqui, não se refira a "praticar um jogo", mas sim a "lançar" – os escravos lançavam os caxangás no cesto, ou na testa, sei lá.

Se queres saber, isso me parece uma daquelas letras que não tem propriamente sentido, misturando vocábulos reais com vocábulos inventados ou modificados apenas pelo amor da sonoridade e da rima. Foi o que aconteceu com "a tonga da mironga do cabuletê", que não significa nada em língua alguma – ao menos era isso o que Vinícius informava a quem vinha lhe perguntar. Como estávamos em plena da ditadura, no entanto, muitos preferiram acreditar que o poeta tivesse escondido, por trás dessas palavras africanas, uma ofensa ao governo militar. Na internet, onde tudo é possível, corre a lenda (discretamente estimulada pelo parceiro sobrevivente do poeta) de que a tradução seria algo como "o cabelo do c* da mãe", dito em nagô!

É claro que, no contexto, a "tonga da mironga do cabuletê" não é coisa boa, não. A letra termina com os versos "Vou lhe rogar uma praga / Eu vou é mandar você/ Pra tonga da mironga do cabuletê" – mas temos de convir que qualquer expressão colocada ali, naquele lugar, teria uma inegável conotação pejorativa. Lembro que nos tempos de ginásio costumávamos usar a expressão "vai pra planfa que te lamblanfa", nas situações em que era impossível empregar o genuíno "puta que pariu" – e tenho certeza de que os leitores devem conhecer várias outras expressões como essa, que não significam nada, especificamente, mas dizem tudo. A "tonga da mironga" deve ser algo similar.

Assim mesmo, fui conferir no indispensável Novo Dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes, a melhor obra que temos sobre africanismos em nosso idioma. Lá encontrei: (1) tonga (do Quicongo), "força, poder"; (2) mironga (do Quimbundo), "mistério, segredo"; (3) cabuletê (de origem incerta), "indivíduo desprezível, vagabundo". Como vês, são vocábulos que existem, mas provenientes de línguas diferentes, com significados que não têm relação alguma com a música (muito menos com a fantasiosa versão de "cabeludos (literalmente) palavrões em nagô"). Vinícius, com o ouvido que só os poetas têm, simplesmente os escolheu por sua sonoridade e combinou-os numa expressão sem valor semântico, mas de alto poder sugestivo.